sábado, 2 de abril de 2011

A exclusão é um desperdício




entrevista com MARCELO PAIXÃO para revista Bovespa



A permanência de desigualdades raciais (e sociais) é fato notório e podem-se economizar adjetivos para descrevê-las. Mas, diferente de certas simplificações, muitas palavras podem ser utilizadas para flagrar a presença de empreendedores negros e/ou afrodescendentes no Brasil. Existe já um importante contingente, embora em franca minoria - o problema está na desproporção com relação à população, na desqualificação profissional, nas dificuldades de acesso a patamares mais altos do mundo dos negócios. Nas contas do economista Marcelo Jorge de Paula Paixão, diretor de graduação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os empregadores negros representam 21% da população urbana economicamente ativa - na população total, porém, a parcela de negros vai a 45,6%. 

Marcelo Paixão, 39, vem mergulhando há anos nessas questões de desigualdade racial, da educação ao mundo dos negócios. Além das aulas e pesquisas, participa de ONGs e entidades que as têm como razão de ser, como é o caso do Observatório Afrobrasileiro, do qual é coordenador. Sob os auspícios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), produziu recentemente, entre outros, o relatório de pesquisa Destino Manifesto: Estudo sobre o Perfil Familiar, Social e Econômico dos Empreendedores/as Afrobrasileiros/as dos Anos 1990. Analisando o que chamou de empreendedores sob dois ângulos - trabalhadores por conta própria (autônomos) e empregadores -, concluiu que as dificuldades que se opõem aos negros nos negócios e no trabalho impõem pesadas perdas tanto a eles como à própria economia. De um lado, porque essa exclusão os impede de crescer e de servir de exemplo de mobilidade social a tantos outros. De outro, porque o País "deixa de utilizar plenamente a capacidade produtiva" das pessoas, "deixa de mobilizar talentos que acabam ficando adormecidos" - um grande desperdício, no fim das contas. 

É desses temas que Paixão trata na entrevista a seguir:
  • Todo mês de novembro - dia 20 é comemorado o Dia da Consciência Negra, que marca o aniversário da morte de Zumbi dos Palmares - convida ao debate sobre a situação do negro no Brasil. Mas em qualquer área, no trabalho, na escola, no mundo dos negócios, as marcas da desigualdade permanecem evidentes. 
    - Não é surpresa. Na terra da democracia racial, que eu posso chamar de "mito da democracia racial", ao longo de todo o século 20, simplesmente não foi criado nenhum tipo de intervenção estatal que contemplasse, positivamente, os afrodescendentes brasileiros, descontadas as exceções pontuais. Nem mesmo surpreende que os empreendedores negros também tenham ficado à margem de políticas públicas que pudessem favorecer suas condições de reprodução econômica, social e familiar. A pouca atenção por parte dos formuladores das políticas de geração de emprego e renda, no mínimo, dificulta possíveis estratégias de ação afirmativa voltada para esse contingente. Por isso, é crescente a pressão pela adoção de políticas de inclusão social. 
  • Em alentado estudo, o senhor mapeia as condições dos empreendedores negros no Brasil, aí considerados os trabalhadores por conta própria (que operam sozinhos ou com ajuda não remunerada) e os empregadores, com maior ou menor informalidade, em qualquer caso. Quem são eles? 
    - Meu estudo parte de levantamentos do PNAD/IBGE até 1999, mas posso afirmar que os dados, de lá para cá, não se alteram. Lembre-se que os afrodescendentes (considerando os "negros" e os "pardos", segundo o que eles próprios declararam ao recenseador) representam 45,6% do total da população brasileira. Em 1999, 23,4% da PEA urbana brasileira eram formados por empreendedores proprietários dos seus negócios (16,154 milhões de pessoas, então). No conjunto, 37% negros. Separando os dados entre autônomos (conta própria) e empregadores, veremos diferenças mais interessantes. Entre os por conta própria, 42,9% eram negros, situação mais equilibrada na comparação com os brancos, e que espelha melhor a distribuição racial da população. Entre os empregadores, porém, apenas 20,9% eram negros. E mais: entre os empregadores com mais de cinco empregados (são os que já ingressaram no setor formal da economia, segundo critérios da Organização Internacional do Trabalho), a parcela de negros cai para 17%. 
  • De homens para mulheres reproduzem-se também as diferenças? 
    - Claro. Na pesquisa por gênero, verifiquei que, entre os trabalhadores por conta própria, 38% eram homens brancos; 29%, homens negros; 19%, mulheres brancas; e 14%, mulheres negras. Já no caso dos empregadores, verificava-se que a presença feminina não passava de 20,9%, sendo particularmente ínfima (4,2%) a presença de empregadoras negras. 
  • Que conclusões o senhor tira dessa primeira análise? 
    - A comparação dos indicadores mostra que uma elevada taxa de informalidade e baixas condições de qualificação marcam os empreendedores, mesmo verificando que os empregadores têm melhores condições do que os trabalhadores autônomos. Além disso, as barreiras à entrada dos negros na categoria dos empregadores parecem superiores às barreiras impostas aos trabalhadores por conta própria. As condições ocupacionais do conjunto dos empreendedores negros são mais precárias do que a realidade do conjunto dos empreendedores brancos. Os empregadores negros, por exemplo, têm rendimento menor que os brancos. Em alguns casos, a diferença chega à metade. Os números só se aproximam quando se comparam empregadores com mais de cinco empregados. No que diz respeito ao setor de atividade, a presença dos negros é maciça somente nos casos de menor qualificação, como o comércio ambulante e a construção civil. No caso do comércio ambulante, a presença relativa dos trabalhadores autônomos negros supera a participação relativa dos negros na população brasileira. 
  • O acesso ou as dificuldades de acesso à educação têm peso importante nisso. 
    - As diferenças de rendimento e qualificação são reflexos e se refletem nos padrões de escolaridade dos trabalhadores por conta própria e dos empregadores, de ambos os grupos raciais ou de cor. Segundo os dados de 1999, a média de estudos dos trabalhadores por conta própria é de 7,1 anos, ao passo que, entre os trabalhadores por conta própria negros, esta média era de cinco anos. Entre os empregadores, embora persistam nítidas diferenças raciais, o nível de escolaridade era mais alto. Assim, os empregadores brancos apresentavam, em média, 10,1 anos de estudo e, os empregadores negros, 7,5 anos. No outro extremo, haviam concluído o ensino superior 8,4% dos trabalhadores por conta própria brancos; 1,1% dos trabalhadores por conta própria negros; 26,1% dos empregadores brancos; e 8,6% dos empregadores negros. Resumindo: os empregadores negros apresentavam um nível de escolaridade superior (às vezes ligeiramente, às vezes bem maior) ao dos trabalhadores autônomos brancos e francamente desfavorável em comparação aos empregadores brancos. 
    Mas no plano da educação, há dados tão ou mais graves. Por exemplo: do total da população brasileira com mais de 15 anos, 8,3% são analfabetos, mas na população negra o analfabetismo chega a 18,7%; considerando o analfabetismo funcional (menos de quatro anos de estudo), os índices chegam a 20,8% para a população total e a 36,1% para os negros. 
  • Inclusão, acesso, democratização o capital, aumento das oportunidades - são temas que vêm pautando a ação da Bovespa, integrante do Pacto Mundial, da Organização das Nações Unidas (ONU). As campanhas de popularização da Bolsa (Bovespa Vai até Você) buscam incorporar novos grupos sociais, onde quer que eles estejam: nos sindicatos, nas empresas, nos clubes, nas universidades, nas praias. O que pode ser feito em relação aos negros? 
    - São todas iniciativas relevantes. Há muitas coisas que podem ser feitas, no âmbito de governo, de entidades da sociedade civil, de organizações não-governamentais (ONGs), enfim de políticas públicas. Mas penso que, por trás disso tudo, devemos promover uma profunda reflexão a respeito da integração dos afrodescendentes nos negócios, no trabalho, na escola e em outros setores da sociedade. O valor mais importante da sociedade brasileira é a diversidade. Precisamos reconhecê-la e preservá-la para enfrentar as desigualdades. 
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Marcelo Paixão
"Mulheres em Ação é referência para afrodescendentes"
  • A Bovespa tem também programas específicos voltados às mulheres. Trata-se do programa Mulheres em Ação. 
    - O itinerário traçado pelas mulheres - e esse é um programa oportuno - é uma boa referência para os afrodescendentes. Nos últimos 20 anos houve uma revolução silenciosa, uma mudança de mentalidade, de percepção que redesenhou o papel das mulheres na sociedade. Hoje, elas ocupam cargos melhores e recebem melhores salários. Como já vimos, existem profissionais e emprendedores negros. O problema é que o número é desproporcional em relação à sua participação na população. Ampliar as oportunidades para eles não é uma questão puramente racial, mas imbrica-se com as demandas do próprio país. 
  • Nesses tempos de responsabilidade social corporativa, em que empresas (e instituições) procuram observar o impacto de suas atividades nos vários campos da sociedade, qual é o ambiente que cerca a atuação do empreendedor negro? 
    - Os empreendedores negros bem- sucedidos precisam (e precisaram) ter autocontrole e disciplina para suportar a incessante pressão do racismo cordial brasileiro, que lhes impõe toda sorte de obstáculos. Por isso, não surpreende que existam, proporcionalmente, tão poucos empregadores negros. Não que a opção "empregadora", pelo menos no curto e médio prazos, venha a propiciar resgate massivo da população negra da situação de exclusão em que hoje se encontra. Mas as questões que a envolvem tem um significado mais amplo. 
  • Quem mais perde com a exclusão? 
    - Ainda que os empregadores negros venham a ser uma minoria - virtualmente privilegiada (e às vezes criticada por ser suscetível ao poder "embranquecedor" do dinheiro) - há uma dimensão simbólica: a existência desse grupo serve de exemplo para os demais negros das possibilidades de mobilidade social ascendente através do próprio esforço; além disso, força os limites do mito da democracia racial brasileira que coloca os afrodescendentes em postos subalternos e de baixa qualificação. Seu sucesso ou fracasso não é um problema estritamente pessoal. Nesse quadro, há pelo menos uma dupla perda: por um lado, os próprios empresários afrodescendentes saem perdendo em termos das suas margens de retorno e competitividade; por outro lado, as dificuldades por eles enfrentadas implicam perda dos postos de trabalho, de receitas (privadas e públicas) e, o que talvez seja o mais relevante, significam a não-potencialização da capacidade gerencial e empreendedora de uma parcela não desprezível do próprio empresariado brasileiro. Em outras palavras, com a exclusão deixamos de utilizar a plena capacidade produtiva das pessoas, deixamos de mobilizar talentos que hoje ficam adormecidos. No limite, uma séria perda para toda a economia do País. 
  • O que pode ser feito no curto e médio prazos para estimular o processo de reflexão a que o senhor se refere? 
    - É notório que empreendedores negros e brancos enfrentam desiguais fatores de competitividade, em que os primeiros se vêem em nítida desvantagem em relação aos segundos. Há razões objetivas - menos anos de estudo, elevada informalidade, menor retorno do investimento, trabalho em piores condições ocupacionais - e razões subjetivas - presença do preconceito gerando conflitos com os demais agentes econômicos e a perda de capacidade gerencial através do rebaixamento da auto-estima. Falo de medidas concretas, não de questões como redução dos juros, retomada dos investimentos públicos ou redistribuição da renda, por saber que estas dependem de mudanças sociais, econômicas e institucionais mais profundas e que não poderão ser alteradas no curto prazo. 
  • Quais são suas propostas? 
    - No estudo que fiz, elenco algumas medidas, nem todas apontadas em direção ao Estado, podendo também vir a ser encampadas por entidades e ONGs do movimento negro, bem como por empresas privadas e instituições da sociedade civil sinceramente preocupadas com a promoção da qualidade de vida da população afrodescendente. Alguns exemplos: a abertura de linhas de crédito especial para custeio e investimento, em bens de capital; para os empreendedores afrodescendentes; o levantamento da situação bancária dos empreendedores negros, visando atualizar sua situação financeira em termos de cadastro no CPF, passivo patrimonial, potencialidades econômicas; o estímulo à legalização (fiscal, previdenciária, trabalhista) dos negócios dos empreendedores negros, maciçamente autônomos e microempresários, e à simplificação dos procedimentos burocráticos que afetam as micro e pequenas empresas; o planejamento para o aumento da escolaridade média, e da capacitação técnica, dos empreendedores negros que não concluíram o primeiro e o segundo grau, englobando filhos e filhas (recorrendo ao sistema S, por exemplo); o fortalecimento da capacidade gerencial dos empreendedores negros, e/ou de seus filhos estimulando estudos secundários e universitários, especialmente, nas áreas de engenharia de produção, ciências econômicas e contábeis, administração de empresas, informática, estatística, propaganda e marketing e direito (estímulo que poderia vir por meio de linhas de crédito para a rede privada ou por cotas para negros nas instituições públicas de ensino superior); o programa especial no Senar para agricultores, autônomos e empregadores negros, bem como para comunidades das áreas de remanescentes de Quilombos; o estímulo ao associativi smo e/ou à fundação de cooperativas entre os empreendedores negros, especialmente, entre os trabalhadores autônomos; a mudança nas leis de licitação pública de modo a destinar parcela de recursos públicos a contratações de produtos e serviços, por parte do Estado, junto às firmas controladas por negros e negras, tal como ocorre de modo semelhante nos Estados Unidos; o estímulo a uma melhor exploração, pela própria comunidade negra, do potencial econômico representado pela cultura afrobrasileira (festas populares, estética negra, turismo étnico; produção cultural, produção de instrumentos musicais, fantasias e de artigos religiosos). 
  • Por que o senhor defende o sistema de cotas na universidade pública? 
    - Não é simples assim. O que acontece é que todas as desigualdades que conhecemos se refletem no espaço escolar. Até mesmo os livros escolares não reproduzem, proporcionalmente, a presença do negro na sociedade brasileira. Quem passa no vestibular é quem estudou em colégio pago, fez curso de inglês, preparou-se adequadamente. Todos sabemos disso. Os mecanismos da desigualdade são econômicos, não de mérito. E confesso: eu mesmo pude estudar, no segundo grau, em colégio pago. Numa questão tão importante como essa, o simples curso natural dos acontecimentos não bastaria para acabar com as desigualdades. Nesse caso, a realidade não se altera só com mudanças de postura. Assim, neste momento, precisamos de uma política pró-diversidade na universidade brasileira. E não há solução sem algumas medidas impositivas. As cotas podem ser uma delas - são uma medida extrema de ação afirmativa. Outras iniciativas também podem surgir: a pontuação diferenciada na universidade, que leve em conta o perfil socioeconômico do aluno, por exemplo. 
  • Há limites para isso? 
    - As cotas não devem ser eternas. Aplicadas, temos de acompanhar sua implantação, seus efeitos, analisando-os a cada etapa. Abertas as oportunidades, vai chegar o dia em que poderemos dizer: está na hora de parar. Eu não gostaria que o próximo cotista fosse filho do atual cotista.

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