domingo, 5 de junho de 2011

O que Pallocci tem a ver com Allende?

                     por Jorge Mauricio Porto Klanovicz
 
      "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia, então? Serve para isso: para caminharmos."
                                                                 Eduardo Galeano
                                                                          
 
 
Duas controvérsias, em princípio absolutamente distintas, vêm merecendo espaços destacados nas editorias políticas. Uma delas, intensamente discutida, ainda em curso e com desfecho imprevisível, diz respeito às atividades exercidas pelo ministro Antonio Pallocci como consultor e ao enriquecimento vertiginoso delas decorrentes. A outra controvérsia vem do Chile: Salvador Allende realmente se suicidou, como conta a história oficial, ou foi assassinado pelos agentes do golpe militar que levou o país a imergir em uma das mais truculentas ditaduras da América Latina?
 
E, a propósito, o que uma coisa tem a ver com a outra?
 
A queda de Salvador Allende, no Chile, no princípio da década de 1970, constitui uma das passagens mais angustiantes da história da esquerda latino-americana.
 
Para todos nós, homens e mulheres que nos identificamos com a esquerda, a "experiência chilena" – expressão que identifica o ineditismo histórico daqueles anos, em que se buscou viabilizar uma inusitada alternativa em que socialismo e democracia seriam valores indissociáveis – subsiste enquanto pauta capaz de estimular reflexões, cujos resultados, certamente, se cingem mais em dúvidas do que em respostas. Permanecem indecifráveis, até hoje, os reais motivos que teriam levado a "experiência chilena" à derrocada. O que derrubou Allende: o avanço demasiado ou a falta de avanço de seu governo em direção a um programa de ruptura?
 
Allende elegeu-se presidente, em 1970, amparado pela Unidade Popular, uma ampla coalizão de esquerda. Do outro lado, representando uma cisão dos grupos chilenos historicamente dominantes – cisão que, sem dúvida, foi imprescindível à vitória da esquerda -, situava-se o Partido Nacional, de orientação conservadora, e o Partido Democrata Cristão, proponente de um reformismo moderado.
 
O governo de Allende, desde seu início, agiu forte, por meio de largas e profundas reformas. Radicalizou-se a reforma agrária, estatizaram-se bancos e empresas e nacionalizaram-se as riquezas minerais, em especial o cobre, principal produto de exportação do país. Foi o que levou Allende a conviver, mesmo antes de assumir, com uma oposição virulenta e com uma postura de sabotagem que conduziria a uma grave crise econômica, cujo sintoma mais nítido foi o desabastecimento generalizado de alimentos.
 
A crise maior, entretanto, talvez residisse na própria Unidade Popular. Sua falta de coesão tornou-se crônica. O Partido Comunista, fiel à sua estratégia de "revolução por etapas", inseria o governo Allende numa fase específica e necessária, a fase de libertação, na qual não se haveria de cogitar uma ruptura com a institucionalidade. O Partido Socialista, a seu turno, ao propor um "Estado paralelo", preconizava, mediante a radicalização do confronto, a abertura do caminho para a "ditadura do proletariado". Salvador Allende, por sua vez, adotaria uma linha própria, dissociada dos dois grandes partidos que o sustentavam. Essa linha, mesmo que falasse em socialismo, resignava-se com os limites institucionais, buscando a governabilidade de modo negociado até mesmo com forças mais centristas. A esquerda chilena acabou ficando, assim, a "meio caminho" entre a alternativa institucional e a ruptura, ambigüidade que foi decisiva para o episódio de 11 de setembro de 1973, quando as Forças Armadas bombardearam e tomaram de assalto o Palácio de la Moneda, em Santiago, levando Allende - que apareceu ao público empunhando uma metralhadora que ganhara de presente de Fidel Castro - à morte.
 
Voltando, assim, à pergunta que propúnhamos sobre os motivos que teriam levado à derrota da "experiência chilena", podemos chegar à conclusão de que não foi nem o avanço demasiado, nem a falta de avanço em direção a um programa de ruptura. O que derrubou Allende foi, justamente, a falta de avanço corajoso em qualquer um dos sentidos; foi o fato de, como já afirmamos, a esquerda ter ficado a "meio caminho" entre as alternativas que se lhe apresentaram. Saber se Salvador Allende se suicidou ou foi assassinado, nesse tocante, não passa de um detalhe irrisório.
 
O clima de hesitação dos anos da "experiência chilena" faz com que as memórias de quem os vivenciou se confundam entre sentimentos de euforia e drama, tornando invisível o limiar que os separa. No Brasil de Lula, de Dilma e de Antonio Pallocci, não há hesitação. Não é possível afirmar que se tenha ficado "a meio caminho" entre uma ou outra alternativa. O governo, a partir de orientação que se tornou hegemônica no Partido dos Trabalhadores ao longo da década de 1990, fez a opção de conformar-se com as fronteiras da institucionalidade. Mas a postura do ministro Pallocci, mais do que isso, indica uma guinada deliberada na direção de um tipo de prática que outrora, em tempos não muito distantes, o Partido dos Trabalhadores execrava sem vacilar: o fato de um agente valer-se das relações construídas em sua vida pública para auferir ganhos vultosos na iniciativa privada. Não ouso questionar, por ora, a licitude da conduta do ministro Pallocci. Mas a questão não deve se reduzir à conformidade de suas ações com a legislação. A questão é que sua conduta perfaz a demonstração cabal de que vários dos melhores e mais proeminentes quadros do Partido dos Trabalhadores cederam, definitivamente, à lógica tradicional e promíscua de operar política, lógica esta que é incompatível com quaisquer postulados de esquerda.
 
Enfim, se no Chile de Allende desapareceu o limiar que separa o drama e a euforia, talvez por aqui, no Brasil de Antonio Pallocci, tenha se tornado menos visível outro limiar: o limiar, cada vez mais tênue limiar, que separa a direita e a esquerda.
 
 


 

 
 

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