domingo, 30 de outubro de 2011

Caixa de Pandora Brasileira



por Zé Reis*

A semana passada, 23/10 a 29/10, ficou marcada por dois episódios que demonstram a falta de caráter e os preconceitos que vem marcando parte da sociedade brasileira, no último período.
O primeiro foi o lamentável vazamento de 14 questões da prova de Matemática do ENEM, ocorrido no Ceará.  Seria legítimo que os atingidos e seus familiares, questionassem a falha e o privilégio que alguns poucos estudantes tiveram ao ter conhecimento prévio de questões da prova. Mas, infelizmente, o acontecido serviu para uma parte de estudantes de outras regiões do país, manifestarem seu ódio e preconceito contra os nordestinos, em especial aos cearenses. Mais uma vez, foram distribuídas pelas redes sociais mensagens ofensivas, desejando a morte e motivações separatistas.  Além disso, serviu para os eternos inconformados com a realização do ENEM, melhor instrumento de seleção para o acesso aos cursos superiores, voltarem à carga e exigirem o fim do exame.
No sábado, 29/10, a divulgação de que o presidente Lula está acometido de um câncer foi o suficiente para que retornassem todos os preconceitos que uma parte da nossa sociedade nutre contra ele.  Essas manifestações demonstram como uma parcela da sociedade não reconheceu e nem admitiu o sucesso político e administrativo de Lula.
Mais grave ainda é que as manifestações encontram eco e são difundidas por certos formadores de opinião.
Essa é uma caixa de pandora, a qual infelizmente aos poucos vai sendo aberta no país. Esperemos que nossas instituições democráticas sejam capazes de domar essas nebulosas opiniões e que elas sejam minoritárias. Pois, se assim não for, o Brasil corre o risco de num futuro, nem tão distante, conviver com batalhas e guerras tão fanáticas e fundamentalistas  como as que vemos em outras regiões  do mundo, onde a intolerância étnica e cultural se impõe.

*Zé Reis –  cientista político, secretário-geral do PT de Porto Alegre

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Pesquisa Kepeler/Sul21 aponta intenção de voto para a prefeitura de Porto Alegre

publicado originalmente no Blog Sul21, de 27/10/11.


Faltando um ano para Porto Alegre eleger seu novo prefeito, pesquisa da empresa Kepeler Consultoria publicada em parceria com o Sul21 mostra que a deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB) lidera quatro dos seis cenários da pesquisa. No entanto, José Fortunati (PDT) aparece melhor colocado na pesquisa espontânea. Mesmo liderando a maioria dos cenários, a deputada é acompanhada de perto pelo prefeito em todas as projeções.
A Kepeler Consultoria entrevistou 600 eleitores de Porto Alegre entre os dias 21 e 24 de outubro. A margem de erro da pesquisa é de 5 pontos percentuais, para mais ou para menos. A amostragem da pesquisa foi coletada em 73 pontos da capital gaúcha, abrangendo todas as regiões do Orçamento Participativo (OP).
Espontânea
Na pesquisa espontânea, José Fortunati (PDT) aparece com 10,8% das intenções de voto. A deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB) recebeu 10,7% das menções dos eleitores. Todos os outros candidatos somados totalizaram 9,9% das intenções de voto. José Fogaça (PMDB) teve 2,5% das menções. Entre os petistas, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT) aparece com 2,2%, enquanto Olívio Dutra apresenta 2%, Tarso Genro surge com 1,7% e Raul Pont com 1,5%.
A maioria dos entrevistados (43,5%), porém, disse que ainda não sabe em quem vai votar para a prefeitura de Porto Alegre. Outros 7% responderam que votariam em branco caso as eleições fossem hoje, 4,5% disseram que anulariam o voto e 5,7% não informaram a preferência.
Veja o gráfico da pesquisa espontânea. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Pesquisa espontânea sobre a intenção de voto para a prefeitura de Porto Alegre. No item "outros" estão agrupados os candidatos que tiveram no máximo 1% das menções | Fonte: Kepeler Consultoria
Estimulada
Na pesquisa estimulada, na qual é apresentado aos entrevistados um disco com os nomes dos candidatos, a pesquisa montou seis cenários diferentes. No primeiro deles, a deputada federal Manuela D´Ávila (PCdoB) aparece com 30,2% da preferência do eleitorado de Porto Alegre, seguido pelo prefeito José Fortunati (PDT), com 28,2% dos votos.
O deputado federal Nelson Marchezan Jr (PSDB) registrou 6,5% das intenções de voto, enquanto o deputado estadual Adão Villaverde (PT) recebeu 5,7%. Também registram intenções de voto Sebastião Melo do PMDB com 3%, Paulo Borges (DEM) com 2,5%, Roberto Robaina (PSOL) com 1,7%, José Francisco Malmann (PHS) com 0,8%.
Neste cenário, disseram que votariam em branco 6,2% dos entrevistados, enquanto 9,2% dos eleitores não souberam responder. Dos consultados, 5,3% disseram que anulariam o voto e 0,8% não informaram sua preferência por algum candidato.
Veja o gráfico do primeiro cenário da pesquisa estimulada. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Cenário 01 - Pesquisa estimulada sobre a intenção de voto para a prefeitura de Porto Alegre | Fonte: Kepeler Consultoria
O segundo cenário traz Manuela D´Ávila com 29,8% das intenções de voto, seguido por José Fortunati, que aparece com 26,3% das menções dos entrevistados. Em seguida, aparecem Nelson Marchezan Jr e o deputado federal Henrique Fontana (PT), com 8% e 7,7% das intenções de voto, respectivamente. Sebastião Melo aparece neste cenário com 3,2% das menções dos entrevistados, Paulo Borges com 3%, Roberto Robaina com 1,8% e José Francisco Mallmann com 1,2%
Na simulação, os eleitores que votariam em branco totalizaram 6,3%; os que não souberam responder foram 7%; 4,7% disseram que anulariam o voto e 1% não informaram a preferência.
Veja o gráfico do segundo cenário da pesquisa estimulada. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Fonte: Kepeler Consultoria
No terceiro cenário montado pela pesquisa, Manuela D´Ávila aparece com 32,2% das intenções de voto, seguido por José Fortunati, que registra 26,7% da preferência dos entrevistados. Nelson Marchezan Jr recebeu 6,8% das menções. Já Adeli Sell teve 4,3% das intenções de voto. Neste cenário, Sebastião Melo registra 3,7% das intenções de voto, Paulo Borges fica com 3%, Roberto Robaina com 1,7%, José Francisco Malmann com 1,2%.
Nesta simulação, 6,2% dos entrevistados disseram que votariam em branco; 8,8% disseram não saber responder; não informaram a preferência 0,8% e 4,7% afirmaram que anulariam o voto.
Veja o gráfico do terceiro cenário da pesquisa estimulada. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Fonte: Kepeler Consultoria
No quarto cenário da pesquisa, o prefeito José Fortunati lidera as intenções de voto com 24,2%, seguido pela deputada Manuela D´Ávila que registra 22,7% e em terceiro lugar aparece a ministra Maria do Rosário com 20%. Nelson Marchezan Jr aparece com 5,8%, Paulo Borges com 3,8%, Sebastião Melo 3%, Roberto Robaina 1,7% e José Francisco Malmann com 1,5%.
Nesta simulação 7,3% dos eleitores consultados na pesquisa não souberam responder, 5,2% afirmaram que votarão em branco, 4% disseram que anularão o voto e 0,8% se recusaram a informar sua preferência.
Veja o gráfico do quarto cenário da pesquisa estimulada. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Fonte: Kepeler Consultoria
No quinto cenário apontado pela pesquisa, Manuela D´Ávila registra 28% das intenções de voto, enquanto José Fortunati aparece com 24,8%. Raul Pont recebeu 14,2% e Nelson Marchezan Jr com 5,8%. Neste cenário, Sebastião Melo 3,2%, Paulo Borges 2,3%, Roberto Robaina 1,8% e José Francisco Mallmann com 1,5%.
Nesta simulação, 7,3 dos entrevistas afirmaram não saber em quem vão votar, 5,7% disseram que votariam em branco, 4,7% devem anular o voto e 0,8% disseram que preferem não informar sua decisão.
Veja o gráfico do quinto cenário da pesquisa estimulada. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Fonte: Kepeler Consultoria
No sexto e último cenário foi excluída a candidatura própria do PT. A pesquisa apontou que Manuela D´Ávila com 30,3% das intenções de voto, enquanto Fortunati registra 28,7%. Em terceiro lugar aparece Nelson Marchezan Jr com 5,2%, seguido de Paulo Borges com 4,8%, Roberto Robaina com 4%, Sebastião Melo 3,8% e João Francisco Malmann com 1,8%.
No simulação, 8,3% dos entrevistados não souberam responder; 7,3% afirmaram que vão votar em branco; 5% disseram que devem anular o voto e 0.7% optaram por não informar.
Veja o gráfico do sexto cenário da pesquisa estimulada. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Fonte: Kepeler Consultoria
A pesquisa também mediu a rejeição dos pré-candidatos junto ao eleitorado de Porto Alegre, quando a pesquisa pergunta em quem os entrevistados não votariam, apresentando um novo disco com a lista de todos os candidatos.
O deputado estadual Raul Pont teve rejeição de 15,7% dos entrevistados; a ministra Maria do Rosário teve 10,8% e o deputado Nelson Marchezan Jr teve 9,2% de rejeição, mesmo índice obtido pela deputada Manuela D´Ávila. No quesito, Paulo Borges registrou 7,8%; José Fortunati 5,5%; Adeli Sell 4,5%, Roberto Robaina, 4,3% Sebastião Melo 4,3%, José Francisco Malmann 4%. A menor rejeição foi para Henrique Fontana 2,8% e Adão Vilaverde 2,8%.
Neste quesito, 10,7% dos entrevistados não souberam responder; 3% afirmaram não ter rejeição por nenhum dos candidatos e 0,7% não informaram.
Veja o gráfico do quesito rejeição. Clique na imagem para ampliar.
Kepeler Consultoria
Fonte: Kepeler Consultoria
Nota metodológica
Pesquisa de opinião pública sobre assuntos políticos.
Público alvo: eleitores registrados no município de Porto Alegre.
Total de eleitores de Porto Alegre: 1.058.044 eleitores (TRE-RS).
Período de realização: 21 a 24 de outubro de 2011.
Técnica amostral: quantitativa probabilística por cotas de sexo, idade e escolaridade, conforme o perfil fornecido pelo Tribunal Superior Eleitoral, cumprindo-se, assim, nesta pesquisa todas as exigências do TSE.
Tamanho da amostra: 600 entrevistas.
Área de realização da coleta de dados: centro da cidade e mais 73 regiões do Orçamento Participativo do município.
Técnica de coleta de dados: entrevistas individuais e pessoais, com aplicação de questionário estruturado contendo perguntas fechadas, semi-abertas e abertas, realizadas em pontos de fluxos de pessoas por pesquisadores treinados.
Supervisão de campo: in loco de 100% das entrevistas por técnicos experientes e rechecagem de no mínino 12% das entrevistas por conferência telefônica.
Margem de erro esperada de cinco pontos percentuais para mais ou para menos e grau de confiança de 95%. Isto significa que se forem realizadas 100 pesquisas segundo a mesma metodologia utilizada nesta pesquisa ao menos 95 delas apresentarão resultados semelhantes

PSD, Ficha Limpa, PT x PMDB e crise global embaralham cena 2012

extraído do Jornal Correio do Brasil.

Potenciais candidatos a prefeito no ano que vem não podem mais trocar de partido, mas uma série de fatores dificulta traçar cenários sobre eleição. Criação do PSD deve enfraquecer oposição a Dilma, mas campo governista estará ‘minado’ por disputa de espaço entre PT e PMDB. Decisão do STF sobre Ficha Limpa pode afetar candidaturas e crise global, também.

eleições municipais
O PSD é um partido que já nasceu com um grande número de representações políticas e poderá influenciar nas eleições municipais do próximo ano

A um ano das eleições municipais, a filiação partidária de potenciais candidatos já está definida – quem quiser concorrer não pode mais trocar -, mas o cenário em que se dará o pleito é imprevisível. A indefinição sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa, a tensão entre PT e PMDB, os dois principais partidos governistas, a rearticulação da direita no recém criado Partido Socialista Democrático (PSD) e a evolução da crise econômica mundial dificultam as análises.
Para especialistas, a entrada em cena do PSD é vista como o elemento que mais vai embaralhar as disputas. “É um partido que já nasceu com um grande número de representações políticas e, por isso, poderá influenciar muito o processo”, diz o cientista político João Paulo Peixoto, da Universidade de Brasília (UnB).
Capitaneado e presidido pelo prefeito paulistano, Gilberto Kassab, a nova legenda já nasceu como uma das maiores do país. Com cerca de 50 parlamentares, é a quarta maior bancada no Congresso, atrás apenas de PT, PMDB e PSDB.
Inventado com o objetivo de abrigar rivais de direita do ex-presidente Lula que se convenceram de que, com Dilma Rousseff, é melhor fugir do confronto com o governo, o PSD deve enfraquecer o campo oposicionista um pouco mais em 2012.
- Por mais que não queiram dar nome à ideologia adotada, é um partido de centro-direita que, ao contrário do PSDB e do DEM, não sofre com o estigma de oposição negativa- , diz o professor Fabiano Guilherme Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de janeiro (UERJ).
Do lado governista, as eleições também se mostram desafiadoras. O motivo é a disputa entre PT e PMDB, que dividem o Palácio do Planalto, com Dilma Rousseff (PT) e o vice, Michel Temer (PMDB), mas, fora dali, vão lutar para ver quem tira mais proveito da máquina federal para eleger correligionários.
Sigla com mais prefeitos (20% do total), o PMDB sai em vantagem, já que candidatos à reeleição são sempre favoritos naturais. Já o PT, que cresceu historicamente a partir de cidades maiores, agora terá de bater de frente com o grande aliado e tomar dele o controle de prefeituras menores, caso queira manter-se em expansão.
Por isso, o pleito pode até ser encarado como o teste definitivo para o casamento dos dois partidos e para uma renovação da dobradinha em 2014, na sucessão presidencial. “A manutenção ou não da aliança vai depender da capacidade de articulação das lideranças. Há tensão entre o PMDB e o PT porque há limites para se equilibrar a relação entre eles”, afirma Guilherme Santos, que também preside a Academia Brasileira de Ciência Política.
À espera de um julgamento final sobre sua consitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Lei da Ficha Limpa, que proíbe candidatura de político com alguma condenação judicial, não importa em qual corte, é outro fator que dificulta juízos definitivos sobre 2012. “Essa decisão poderá alterar diretamente a listagem de candidatos”, diz Peixoto.
A lei foi aplicada na eleição do ano passado, mas até hoje há candidato impugnado tentando reverter a decisão. E quanto mais o STF demora para dar uma sentença, pior – menos tempo para que todas as dúvidas relacionadas à lei sejam esclarecidas à população e aos próprios candidatos. “Isso acaba criando uma insegurança jurídica que prejudica o processo eleitoral”, critica Guilherme Santos.
Os dois cientistas discordam, porém, sobre o poder de a crise econômica global influenciar as disputas municipais de 2012. Para Peixoto, a capacidade de o governo reagir à crise com medidas que protejam o país pode ajudar ou prejudicar candidatos dilmistas. Já Guilherme Santos acredita que este tipo de crise interfere em eleições nacionais, não nas municipais locais, mais pautadas por temas paroquiais.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Cristina e Dilma

*por Marcos Coimbra (extraído do Blog do Noblat)


Embora sem deixar de registrar a vitória que Cristina Kirchner obteve domingo, nossa imprensa economizou no espaço e no destaque que deu à matéria. Foi manchete em alguns dos maiores jornais, em outros apenas título secundário na primeira página, mas recebeu tratamento discreto de todos.
O mesmo ocorreu no noticiário das principais emissoras de televisão e nos grandes portais de internet. Frente, por exemplo, ao tema do momento, os escândalos no ministério do Esporte, ficou quase apagada.
Pode ser que esse comedimento decorra da certeza de que Cristina se reelegeria. Havia muitas pesquisas que apontavam para o que acabou acontecendo: que ela conquistaria um novo mandato, bem à frente de seus oponentes, já no primeiro turno.
Foi o que ocorreu e a vitória terminou sendo ainda maior. Ela não só definiu a eleição presidencial com votação recorde na história argentina recente, chegando a 54% dos votos (apenas Perón teve mais que isso, nas eleições de 1951 e de 1973), mas levou sua coligação à maioria nas duas Casas do Congresso e ao governo de oito das nove províncias que estavam em disputa.
Embora esperado, o resultado merecia ser discutido com mais atenção. E não apenas pela importância que tem a Argentina para o Brasil, como nosso maior parceiro comercial na América do Sul, superada somente pela China e os Estados Unidos como destino de nossas exportações e origem do que compramos no resto do mundo.
As trajetórias dos dois países sempre foram próximas, apesar das grandes diferenças existentes. Tivemos ditadores populistas na mesma época, experimentamos ditaduras militares simultâneas, saímos delas quase juntos (sem contar o breve interregno que houve por lá entre 1973 e 1976, sem paralelo aqui).
Depois das redemocratizações, as semelhanças permaneceram, mas era como se o relógio da história andasse mais depressa na Argentina. Foi o período em que se brincava dizendo que, entre os países, havia um “efeito Orloff” (“Eu sou você amanhã!”), em que eles sinalizavam a cada dia o que seríamos no dia seguinte.
Aconteceu assim com o neoliberalismo, com a adoção do receituário preconizado pelo chamado Consenso de Washington (liberalização, integração internacional, privatização, entre outras medidas), primeiro na Argentina, em 1991, e depois no Brasil, em 1995. Para sublinhar nossos paralelismos, tivemos um paradoxo semelhante: lá, foi Carlos Menem, um peronista, e aqui Fernando Henrique, um socialdemocrata com formação de esquerda, que implantaram essas políticas.
No ocaso do neoliberalismo, o Brasil assumiu a dianteira e inverteu o “efeito Orloff”. Kirchner tomou posse quase ao mesmo tempo que Lula, mas demorou mais que o brasileiro a por em prática programas de ampliação do consumo, através de políticas sociais e da valorização de salários e aposentadorias.
Os observadores da política argentina são unânimes ao considerar que Kirchner teria sido reeleito se tivesse participado da eleição em 2007, ao invés de ceder a vaga a Cristina. O fato é que não o fez e ela ganhou. Se o desejo de Néstor era voltar à Presidência, importa pouco. Ele morreu, foi Cristina quem disputou e venceu.
(Será que haverá uma analogia brasileira para a contradança que os Kirchner pareciam encenar e que foi interrompida pela morte de Néstor? Néstor, depois Cristina, depois ...? Lula, depois Dilma, depois....?)
Hoje, as similaridades entre as agendas de Cristina e Dilma são visíveis. Mas elas as encaminham de maneiras diferentes.
As duas governam com alta popularidade. Cristina acabou de obter uma vitória consagradora e só um desinformado imagina que Dilma não se reelegeria (com folga) se disputasse hoje. A oposição a ambas se enfraqueceu, e atravessa dificuldades para encontrar um discurso e definir lideranças.
Os grandes conglomerados da indústria de comunicação não gostam de seus governos, coisa que Dilma trata com naturalidade. Cristina, de seu lado, é adepta do “Bateu, levou”.
O que diriam nossos conservadores se Dilma fizesse como Cristina? Se levasse o Congresso, onde tem maioria, a aprovar uma “Ley de Medios” para evitar a concentração do poder de mídia em poucas empresas?
Se usasse recursos orçamentários para comprar os direitos de transmissão dos campeonatos de futebol de todas as divisões, cedendo sua veiculação à emissora pública (e a qualquer outra), assim permitindo que todos possam ver as partidas sem pagar?
Se estendesse a iniciativa para o vôlei, o basquete, o rúgbi, o tênis e os Jogos Olímpicos? Se impedisse que os dois maiores jornais do país continuassem a usufruir vantagens de monopolista na indústria de papel-jornal?
Reeleita e mais forte, Cristina pode radicalizar (algo nada surpreendente em seu país). De domingo para cá, seus adversários não estarão dormindo tranquilos.
Enquanto isso, a direita brasileira deveria soltar foguetes por alguém como Dilma ser nossa presidente.

*Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

domingo, 16 de outubro de 2011

Traços da África




Por Gilberto Cruvinel, Do Estadão - 15/010/2011

Traços da África
De Machado de Assis a Paulo Lins, os quatro volumes de Literatura e Afrodescendência no Brasil trazem o mais ambicioso painel crítico já publicado sobre a contribuição da herança africana para as letras do País. A história do continente também ganha um estudo completo em oito tomos.
Em março, as escolas públicas do País passam a receber o primeiro material sobre a África - Divulgação
'Literatura e Afrodescendência no Brasil' aborda herança africana para as letras no País.  Nova coleção traz importância da África para a literatura nacional15 de outubro de 2011 | 3h 08
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
A África está na ponta da língua dos brasileiros. A partir de março, as escolas públicas do País passam a receber o primeiro material didático produzido aqui sobre a história do continente, atendendo a uma lei publicada em 2003, que determina o ensino da história e da cultura africanas aos estudantes. Esse material foi preparado pela Universidade Federal de São Carlos com base na coleção de oito volumes da História Geral da África, compilada pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e agora lançada comercialmente pela Cortez Editora (leia na página ao lado). Simultaneamente, chega às livrarias outra coleção, Literatura e Afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica, quatro volumes publicados pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais que cobrem desde a produção de autores afrodescendentes nascidos antes de 1930, como Luiz Gama - de quem também é lançado Com a Palavra, Luiz Gama (leia artigo abaixo) - até contemporâneos como Paulo Lins, autor do polêmico Cidade de Deus. Finalmente, para os interessados no diálogo com línguas próximas a nós vindas do outro lado do Atlântico, a Bertrand Brasil publica o Dicionário Yorubá-Português, do ensaísta e especialista em cultos africanos José Beniste. Ele traz 18 mil verbetes e uma introdução básica ao aprendizado e à pronúncia do idioma. Vale o esforço: afinal, trata-se de uma língua falada por 30 milhões de pessoas na Nigéria, sul de Benin e nas repúblicas de Togo e Gana.
O interesse pela cultura africana no País está mobilizando a universidade brasileira. Só a antologia crítica de literatura, organizada pelo professor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da UFMG, contou com a colaboração de 61 pesquisadores vinculados a 21 instituições do ensino superior nacionais e seis estrangeiras. Eles selecionaram 100 escritores de todas as regiões do Brasil, apresentando ao leitor ensaios críticos que não dispensam excertos das obras e dados biográficos curiosos como os do citado líder abolicionista Luiz Gama (1830- 1892), primeiro escritor brasileiro a se assumir afrodescendente, filho de uma quitandeira Nagô e de um fidalgo português.
O primeiro volume é dedicado aos autores precursores, cobrindo o período que começa no século 18 (com Domingos Caldas Barbosa), passa por Luiz Gama, Machado de Assis e avança até Lima Barreto. O segundo volume analisa obras de escritores nascidos nas décadas de 1930 e 1940 (como Nei Lopes e Muniz Sodré). O terceiro volume, que abarca os contemporâneos, apresenta um ensaio sobre 39 literatos nascidos na segunda metade do século passado (como Paulo Lins e Ana Maria Gonçalves). O último volume, além de depoimentos de autores como Abdias Nascimento, reúne textos críticos de, entre outros, Silviano Santiago, colunista do Sabático, e reflexões sobre o projeto de uma literatura afro-brasileira.
Dito assim, parece estar em curso uma espécie de evangelização africana por meio da literatura. E está. Séculos de colonização e eurocentrismo embranqueceram Machado de Assis a tal ponto que os críticos não param de atribuir as invenções literárias do brasileiro à influência do irlandês Laurence Sterne (1713-1768). Também os publicitários da agência contratada pela Caixa Econômica Federal ressaltaram num comercial supostos traços caucasianos do escritor - que era mulato e neto de escravos alforriados. Os homens da publicidade carregaram nas tintas - mais do que Bernardelli no famoso retrato pintado do autor - e usaram um ator branco para interpretar o escritor na propaganda comemorativa dos 150 anos da instituição. No comercial, Machado aparece como correntista da instituição, mais alvo que o Monte Fuji. Internautas revoltados com o que consideraram racismo conseguiram fazer com que a Caixa tirasse o anúncio do ar.
"Ainda vivemos sob a hegemonia dos valores etnocêntricos, brancos, cristãos e ocidentais", diz o organizador da antologia crítica sobre literatura e afrodescendência no Brasil, Eduardo de Assis Duarte. "Ela é silenciosa e constante, vem do nosso passado escravista, em que o negro era considerado apenas força de trabalho", conclui. Isso explica, em parte, a razão de a literatura dos afrodescendentes ter como principal característica a autorreferência. São textos autobiográficos porque, como diz o professor, "é raro encontrar o negro como tema da escrita do branco na literatura brasileira canônica". Se os escritores afrodescendentes insistem em falar da condição de escravizado é porque o país "multiétnico" esqueceu deliberadamente os pioneiros autores negros e pintou um retrato ambíguo de figuras como Machado de Assis.
Assis Duarte, autor de um livro sobre o fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis Afrodescendente (Editora Crisálida, 2007), vai contra a tese dos que defendem a neutralidade do escritor na questão abolicionista. Para o professor, os textos do acadêmico contradizem o possível abstencionismo do romancista de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Segundo Assis Duarte, Machado usou 23 pseudônimos para atirar petardos nos jornais antiabolicionistas. O "embranquecimento" do bruxo de Cosme Velho faria parte do silencioso projeto de "genocídio do negro brasileiro" que viria a ser denunciado muitos anos depois pelo escritor Abdias Nascimento, morto em maio, ao nadar contra a corrente do rio da mestiçagem de Gilberto Freyre. Este, conclui o professor, estaria empenhado em camuflar a memória do passado africano e negar a alteridade dos afrodescendentes. "Nenhum país passa pela escravidão impunemente", observa. "Autores como Machado e Lima Barreto pagaram caro por isso."
O último, diz Assis Duarte, ainda teve a má sorte de ser visto como um "autor de subúrbio", acusado de tudo, "inclusive de desleixo verbal e falta de profundidade psicológica". Mulato num Brasil eugênico, Barreto testemunhou (aos 7 anos) a abolição da escravatura, mas morreu, aos 41 anos - meses depois da Semana de Arte Moderna -, dependente de álcool e deprimido, após ser internado por diversas vezes em clínicas psiquiátricas. "Muito se fala de Triste Fim de Policarpo Quaresma, mas, seis anos antes, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, ele já denunciava a hipocrisia da sociedade brasileira, que relegou os negros ao campo dos subalternos." No livro, marcado por referências autobiográficas, Lima Barreto fala do filho de uma mulata que sai do interior para estudar Medicina no Rio e não consegue, acumulando frustrações pelo caminho.
Lima Barreto tampouco se rendeu aos estereótipos dos quais nem mesmo os escritores modernistas escaparam, de acordo com o professor. "A mulata, na literatura canônica brasileira, de Rita Baiana a Gabriela, é sexy e estéril, foi moldada para suprir as necessidades do leitor das elites", analisa. "Em contrapartida, a Clara dos Anjos de Lima Barreto entrega-se por amor e fica grávida." Em tempo: Clara é mulata, filha de um carteiro de subúrbio. O amante, Cassi Jones, é branco, sardento, de classe social superior e malandro. Não pensa muito para eliminar aqueles que cruzam seu caminho. Guarda, enfim, algum parentesco com os pitboys do Brasil contemporâneo.
A reação natural à violenta discriminação racial do escritor de origem africana no Brasil foi a criação, nos anos 1960, de grupos literários articulados com os ideais pan-africanistas. "Poetas e ficcionistas se organizaram em grupos como o carioca Negrícia e o gaúcho Palmares, que nascem do impulso de resgatar a questão do negro como vítima do embranquecimento e para combater o mito da escravidão benigna, que de benigna não teve nada", comenta Assis Duarte. A organização em coletivos, como a dos poetas paulistas fundadores dos Cadernos Negros (livros em formato de bolso), seria apenas um manifesto político ou uma tendência? "Os Cadernos são, desde 1978, a principal vitrine da comunidade afrodescendente", responde o professor, que ainda assim não arrisca destacar um nome entre os contemporâneos.
Não haveria no Brasil dos afrodescendentes um escritor incendiário como James Baldwin (1924-1987) - autor de Da Próxima Vez, o Fogo (1963), dois ensaios sobre a condição dos negros na América e suas relações com o cristianismo e o islamismo - ou uma Toni Morrison (Nobel de Literatura de 1993), autora de romances em que a mulher negra é quase sempre a protagonista. "Uma das explicações para isso é que os negros americanos foram alfabetizados muito antes dos brasileiros, como prova a autobiografia de Frederick Douglas, publicada em 1845, que fugiu dos EUA para a Inglaterra e voltou como militante abolicionista." Referindo-se a Baldwin, nascido numa família pobre do Harlem, o professor lembra que o escritor, embora tenha abandonado a religião, frequentou a Igreja, assim como Mahommad Gardo Baquaqua, africano traficado para o Brasil em 1844 e que, batizado pelos mórmons como José da Costa, publicou a autobiografia em inglês, dez anos depois. "Como não admitiam a intermediação para a palavra do Senhor, todos tinham de aprender a ler a Bíblia e isso fez uma diferença tremenda."
O Brasil, na época, estava mais interessado em taxar mercadorias importadas e mal acabara de entrar no circuito de comunicação - 1844 foi o ano da primeira transmissão por telégrafo de Morse. Machado era um menino de 5 anos e os escravos nem sonhavam em ser alfabetizados. "Mesmo quando ele começou a escrever, seus leitores eram da elite branca, não havia a crença no livro como redenção." A expressão da cultura dos afrodescendentes continuou sendo oral nos anos seguintes, isso quando o debate da questão racial pegava fogo nos EUA e os movimentos de afirmação da identidade negra ganhavam força, nos anos 1920, com a poesia militante de Langston Hughes, aponta Assis Duarte. "Só nos anos 1930 é que o rádio passou a ser o porta-voz dos negros brasileiros, ainda assim por causa dos compositores de música popular."
Uma característica dos autores contemporâneos afrodescendentes, segundo o organizador da coleção de literatura afrodescendente no Brasil, é o uso da mídia eletrônica "como forma de estabelecer um contato mais direto com o público". É o caso do escritor carioca Paulo Lins, ex-morador da Cidade de Deus que começou sua carreira numa cooperativa de poetas - reafirmando a tese dos coletivos - e assinou vários roteiros para cinema e televisão. Outra característica é a predominância da poesia sobre a prosa. A descoberta mais surpreendente da coleção é a da participação regional dos escritores no bolo afrodescendente: o maior pedaço é do Sudeste, mais rico e desenvolvido. Dado que talvez explique outro ainda mais curioso, o do crescimento do número de mulheres afrodescendentes no mundo literário, antes dominado pelos homens.
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Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
É uma história que começou a ser escrita em 1964 e só finalizada mais de 30 anos depois, exigindo a participação de 350 especialistas sob a coordenação de um comitê científico internacional de 39 intelectuais. Lançada originalmente entre 1980 e 1999, a coleção História Geral da África, que tem oito volumes, acaba de receber sua primeira edição comercial no Brasil pela Cortez Editora, em parceria com a Unesco. Coordenador técnico da edição em português, o professor Valter Silvério, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, anuncia que a publicação (320 mil acessos pelo site da Unesco) terá ainda uma edição resumida. Ela está a caminho e vai ser lançada, no próximo mês, em dois volumes, dirigidos a professores da área de educação básica.
A princípio, existia a proposta de um nono volume, sobre a diáspora africana, para completar a coleção, pois o oitavo, que começa em 1935, apesar de abordar as lutas políticas na África - de 1945 à independência de vários países -, não contempla as mudanças provocadas pela globalização. Dos oito volumes, o quinto, segundo Silvério, é fundamental para os professores, pois acompanha desde a vinda dos primeiros africanos para o Brasil até o colapso de antigos Estados como a Etiópia cristã e Songhai (oeste do Sudão).
Os dois volumes que estão prontos para os professores são mais acessíveis que os da coleção integral. "Por ser uma obra de referência, mantivemos a forma original de História Geral da África, respeitando o olhar dos pesquisadores africanos", justifica Silvério. Não é, portanto, o olhar do colonizador, nem despreza as fontes orais dessa história - cujo marco zero, no livro, é a pré-história do continente e o período final do Neolítico.
O olhar do colonizador, segundo o professor, "separou a África branca da África negra" e mais confundiu que explicou a diversidade de culturas do continente, visto na coleção numa perspectiva de unidade africana.
No primeiro volume, além de contar a pré-história da África, os pesquisadores abordam os aspectos linguísticos e as migrações no continente. Uma língua, cuja origem constitui um mistério, é o iorubá, que acaba de ganhar um dicionário.
Outro título fundamental recentemente relançado em nova e ampliada edição é A Mão Afro-Brasileira, organizado pelo curador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araujo, que cedeu todas as imagens das capas da coleção História Geral da África. Além de analisar a contribuição de artistas afrodescendentes para a história das artes (pintura, escultura, música, dança, fotografia, arquitetura), do Brasil colonial ao contemporâneo, os volumes destacam o trabalho de pessoas que ajudaram a construir o patrimônio visual, jornalístico e literário do País.
Particularmente interessante é o capítulo dedicado aos escritores afrodescendentes, que apresenta, de maneira sintética, um panorama da literatura negra nacional, da primeira romancista brasileira, a maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), mulata e bastarda, ao poeta paulista Cuti. / A.G.F.

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'Com a Palavra, Luiz Gama' - coletânea de poemas, artigos, cartas e máximas - restitui o autor e não apenas o que se disse dele
15 de outubro de 2011
Lilia Moritz Schwarcz - O Estado de S.Paulo
 É poca difícil é a que atravessamos para as causas judiciárias. O leitor desavisado, que passeia rapidamente pelas seções dos jornais diários, pode imaginar que, a se fiar pela frase que abre esse artigo, estaríamos diante de mais uma manchete, entre tantas, que descrevem escândalos nesse setor.
Mas o dito saiu da lavra de Luiz Gama, advogado, jornalista, republicano, abolicionista e figura pública em finais do século 19. Diferentemente do que ocorreu nos EUA, por aqui restaram poucos relatos de ex-escravos, e também por isso o caso de Luiz Gama se destaca nesse ambiente que mais lembra um deserto. Claro que há muita incerteza cercando a vida do personagem, até porque, seu maior documento biográfico é ainda uma carta de autoria própria. De toda maneira, conta a história que Gama seria filho de Luiza Mahin - escrava que atuara na Sabinada (1837) e na revolta dos Malês (1835) -, e de um fidalgo português, que, endividado, tratou de vender o filho.
Se fosse só por isso, o exemplo de Gama já serviria de modelo. No entanto, a continuação da história é ainda mais comovente; exemplo não de passividade, mas de agência e protagonismo. O cativo aprende a ler no espaço da casa-grande, e se transforma com o tempo em advogado dos escravos. A trajetória e o destino se juntam para fazer desse personagem um exemplo, e desse exemplo uma alegoria.
Muitas vezes, porém, a biografia nubla a produção, ou então, essa última só aparece a reboque da primeira. É sempre louvável não se fiar no mero biografismo: essa espécie de ficção que impõe continuidades a relatos lacunares; ou confere previsibilidade a uma vida como as nossas; com avanços e recuos, cotidiano e negociação. Em Com a Palavra, volume de textos de Luiz Gama organizado por Ligia Fonseca Ferreira, quem dá o tom é o próprio autor. Mais ainda, a produção de Gama surge multifacetada, a partir dos vários gêneros que o consagraram: poemas, artigos, cartas, "máximas às pressas" retiradas de O Polichinelo, e material póstumo.
O resultado é uma obra variada e que permite identificar uma escrita sarcástica, irônica e crítica, assim como apreender recorrências estilísticas e temáticas. Forte, Luiz Gama não poucas vezes permeia sua narrativa com negritos, pontos de exclamação ou interjeições. Nesses momentos é como se víssemos o escritor debater-se e afirmar sua interpretação. Por sinal, num país em que o enriquecimento com frequência embranquece, e em que escritores negros ou mulatos se descrevem como brancos, Luiz Gama é dos primeiros a introduzir de maneira implícita e explícita a afirmativa de "negro sou". É isso que nos mostra Ligia Fonseca Ferreira, que, com rara elegância, democraticamente apresenta o material, deixando ao leitor a tarefa de avaliar e avaliar sua real importância.
Os temas, a despeito de serem muitos, são de certa forma recorrentes. Luiz Gama insiste em bater na corrupção política, nas mazelas do Império, no preconceito racial vigente, na venalidade do judiciário, na falsidade dos "doutores", na pouca idoneidade do clero. Por trás de tudo isso, tal qual sombra indigesta, está a escravidão e as contradições violentas que o sistema ensejava.
É interessante pensar que Luiz Gama não negava sua experiência passada, como escravo, mas escolhia "praticar sua liberdade", valendo-se do exercício da lei. A despeito de não ter concluído o curso de Direito, é conhecido o papel do ativista na libertação de mais de 1.000 cativos, e na acusação sistemática das falcatruas do dia a dia. Numa época em que a escravidão era um fardo pesado, e em que a liberdade não passava de prêmio frágil, Luiz Gama denunciou sempre que pôde as tantas formas de reescravização existentes no País. Alardeou a inoperância da lei, e como o final do tráfico de escravos não inaugurara um estado de direito jurídico. Africanos entrados no Brasil após 1830, ainda constavam na lista de escravos; cativos que lograram liberdade eram com frequência reconduzidos à antiga condição; negros libertos em testamento tinham sua condição revogada por novos senhores e assim por diante.
O fato é que num contexto em que a escravidão era uma certeza, e a liberdade (ou sua manutenção) uma imensa dúvida, Luiz Gama se bateu judicialmente pelo uso da lei. Dizia "que a lei deveria ser respeitada e não se tornar um joguete pernicioso". Escancarava a existência "de muitos africanos em situação ilegal e com o conhecimento das autoridades" e mostrava como "o próprio imperador teria dado a essas autoridades instruções secretas, para que não tomassem conhecimento das reclamações ...". E desabafava: "Deverão os amigos da humanidade, os defensores da moral cruzar os braços diante de tão abominável delito?".
O leitor tem em mãos um retrato de corpo inteiro de um batalhador dos direitos, nesse país da cidadania falhada. Para se ter uma visão completa faltaria correr os olhos nos processos judiciais, que completariam esse quebra-cabeças chamado Luiz Gama. Pouco importa. Vale mais elogiar a cuidadosa pesquisa que resultou nesse livro que restitui o próprio autor, e não apenas o que dele se disse. E Gama não perdeu atualidade. Não só o problema racial e o tema da cor retornam tal qual convidados imprevistos, como as elites perdem seu ar civilizatório para receber tom de suspeita e chacota: "Impera no Brasil o patronato, fazendo que o Camelo seja Gato". Com a palavra, Luiz Gama.
Nas salas de aula - Material didático começará a ser distribuído em março
15 de outubro de 2011
Lisandra Paraguassu - O Estado de S.Paulo

As escolas públicas brasileiras começarão a receber, já no próximo ano, o primeiro material didático produzido no País sobre a história da África, a diversidade cultural dos negros e a participação dessa população na formação do Brasil. Os textos, preparados pela Universidade Federal de São Carlos com base na extensa bibliografia História Geral da África, compilada pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), começam a ser distribuídos em março, inicialmente para as turmas de educação infantil.
O material completo inclui livros para os alunos e material de orientação para o professor. Até o fim de 2012, estudantes do ensino fundamental e médio em todo o País também terão nas mãos livros didáticos específicos sobre o tema, mas que vão além da história. "Quando falamos em história geral, se pensa na visão formal do processo histórico, mas serão trabalhados vários aspectos. A intenção é ter uma proposta multidisciplinar", explicou o coordenador de educação para as relações étnico-raciais do Ministério da Educação, Antônio Mário Ferreira. "Temos material de literatura, geografia, biologia, matemática e a história propriamente dita."
Para as crianças de 4 a 6 anos, o trabalho pode envolver, de acordo com o coordenador, cores, música - como o uso da percussão pelos povos africanos - e lendas locais, entre outros elementos. A intenção é que os professores, com ajuda dos livros de orientação, desenvolvam atividades que auxiliem os estudantes a aceitar, desde pequenos, a diversidade racial, cultural e social.
O ensino da história da África e da cultura negra nas escolas brasileiras tornou-se lei em 2003. No ano seguinte, um parecer do Conselho Nacional de Educação definiu a maneira como o tema deveria ser tratado nas escolas. Entretanto, não havia nenhum tipo de material didático que pudesse ser distribuído aos professores.
Um acordo com a Unesco permitiu ao MEC reproduzir a bibliografia preparada pela Organização, composta de oito volumes. Este ano, o ministério enviou o material para todas as universidades públicas e filantrópicas do País e permitiu o seu acesso via internet. "Até agora, já foram feitos mais de 30 mil downloads", revelou Ferreira. "No entanto, esse é um material muito denso, para pesquisadores." Por essa razão, o MEC contratou a UFSCar para fazer, além do material didático, um resumo da obra. São dois volumes, de 800 páginas cada um, que chegarão ainda este ano às bibliotecas das escolas públicas de ensino médio.

PT e PSDB a Caminho de 2014

por Marcos Coimbra*, publicado no blog do Noblat de 16/10/11

Enquanto alguns se encantam com as movimentações de Kassab e seus correligionários, achando que representam um “fato novo” relevante no jogo político nacional, o sistema permanece onde sempre esteve. Há 20 anos, não muda (mais tempo que durou a República de 1945 inteira).
Desde a crise do governo Collor e a posse de Itamar, a vida política nacional se bipolarizou. De um lado, o PT (e seus satélites), de outro, o PSDB (também com legendas orbitando em seu torno). No restante, lideranças e partidos que avaliam com qual dos dois ficará o poder, a fim de decidir com quem estarão. Um dia, será com um, amanhã, com o outro. (Sem esquecer da extrema esquerda, que será sempre contra tudo e todos).
Esse modelo é tão sólido que, nem bem começou o governo Dilma, já se discute qual será o candidato petista e qual o tucano que se enfrentarão em 2014.
Há, até, quem faça a mesma pergunta a respeito das eleições de 2018, acreditando que a bipolarização atual chegará aos 30 anos, na hora em que o sucessor do sucessor de Dilma terminar seu mandato.
Nas duas últimas eleições presidenciais, essa tendência se acentuou. Em 2006, Lula e Alckmin dividiram mais de 90% dos votos no primeiro turno. Em 2010, Dilma e Serra somaram quase 80%, apesar do “fenômeno Marina”.
Ou seja, mesmo havendo a eleição em dois turnos - que deveria encorajar os partidos a lançar candidatos e deixar as composições para o segundo turno -, a bipolarização está se consolidando.
Não parece impossível que, nas próximas, surjam terceiras e quartas vias, mas nada indica que as chances sejam altas. Qualquer um vê que o governador Eduardo Campos, por exemplo, tem potencial para uma candidatura presidencial logo em 2014.
Mas poucos apostariam nela, pois ele mesmo e seus companheiros de PSB dão mostras de preferir continuar ao lado do PT até o final do governo Dilma – hipótese que seria inviabilizada se tivessem candidato próprio. No máximo, pensa-se em seu nome como opção (desejável por todos, incluindo o PSDB) para a Vice-Presidência.
O paradoxo desse cenário é que ele existe apenas no topo do sistema político, sem correspondência efetiva em suas bases e níveis intermediários. Fora da escolha do presidente da República, continuamos a ter um sistema partidário multifacetado, com mais de 20 partidos representados na Câmara (hoje, talvez um pouco menos, pois algumas dessas legendas – as menos significativas – foram esvaziadas pelo PSD).
No Legislativo federal, PT e PSDB têm o mesmo tamanho: juntos, elegeram141 deputados em 2010 (27% de 513) e somam 23 senadores (28% de 81). Nos estados, números semelhantes: têm 8 governadores (29% de 27) e 272 deputados estaduais e distritais (25% de 1059).
Ou seja, partidos que representam algo perto de um quarto do eleitorado nas eleições legislativas e estaduais, capitanearam as cinco últimas eleições presidenciais e parece que continuarão a polarizar as futuras (até onde conseguimos enxergar).
Para 2014, a estratégia do PT é clara: fazer o que estiver a seu alcance para que o governo Dilma seja bem-sucedido. Isso não significa que inexistam tensões e até conflitos na relação entre a presidente e o partido.
O Planalto não vai fazer, sempre, tudo que seus líderes e integrantes desejam, e esses não responderão com obediência a cada orientação que vier de lá.
Mas, como vimos na sucessão de Lula, chega uma hora em que o PT se ajeita. E vai se acertar, de novo, quando a eleição se avizinhar.
Não há nada que um partido que está no poder possa fazer além disso. Quem quer que seja seu candidato, terá que justificar o governo. Se as coisas continuarem a andar bem no país, será fácil. Se não, menos, mas a explicação e a defesa do trabalho feito são inescapáveis.
Importa pouco, para esta discussão, se Dilma será a candidata ou se Lula vai voltar. Quem a conhece calcula que ela participará da decisão de forma racional, ponderando o que é mais vantajoso para o partido no médio e longo prazo. O mesmo deverá fazer o ex-presidente.
Isso, em outras palavras, quer dizer que a eleição de 2014 não começou para o PT: não precisa formular uma agenda e pode deixar a definição de sua candidatura para quando considerar oportuno.
No PSDB, as coisas são mais complicadas. Para convencer o eleitorado de que é preciso mudar, é necessário dizer como e em quê. E mostrar-se minimamente coeso, com uma liderança que expresse essa plataforma.
Hoje, os tucanos estão presos à sua eterna discussão de “resgatar o governo FHC”, como se não valorizá-lo fosse o motivo dos insucessos recentes. E continuam sem definir o rosto que terão.
Para eles, a eleição já começou. Só que não sabem o que fazer.

*Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi

sábado, 15 de outubro de 2011

É o emprego, “cara”…




Curiosamente, Obama, o criador do honroso apelido, faz  uma espécie de mea culpa por demorar quatro anos para entender a mensagem de seu então “colega” -- o trabalhador Luiz Inácio Lula da Silva


Por Delfim Netto, Carta Capital
De todos os desperdícios de recursos naturais de uma sociedade, nenhum é mais injusto, mais prejudicial à integração social e à autoestima do cidadão do que negar-lhe a oportunidade de viver honestamente e sustentar a família com o resultado do seu trabalho. É por isso que a construção de uma sociedade mais “justa” começa pela maximização do nível de emprego.
Não se imagina que em uma organização econômica como a que vivemos todos terão emprego a um só tempo, mesmo nos períodos mais dinâmicos de crescimento. Sempre haverá fases de acomodação do nível da atividade podendo gerar uma taxa de desemprego friccional que a sociedade “justa” tem de socorrer com as políticas sociais do Estado.
Há quatro anos a sociedade americana viu-se envolvida em uma séria crise bancária que em poucas semanas eliminou milhares de empregos no setor financeiro, antecipando a tragédia que em alguns meses suprimiu perto de 15 milhões de postos de trabalho nos demais setores da economia. Países da Comunidade Europeia sofrem hoje de forma dramática o agravamento de uma crise de origens similares, sob ameaça de desmoronamento dos pilares de sua principal construção, o sistema do euro. No mundo inteiro, algo como 30 milhões de trabalhadores não recuperaram os empregos incinerados desde a crise de 2008/2009.
As consequências de ordem política e institucional estão revelando-se na medida em que os cidadãos ocupam as ruas das maiores metrópoles do Ocidente, cobrando respostas das lideranças globais, aparentemente perplexas e atordoadas. É surpreendente, mas reveladora deste estado de coisas, a explicação e o mea culpa atribuídos ao ministro da Economia da Grécia, Michalis Chryssohoidis: “Nossa situação é desesperadora, porque reduzimos de forma bastante drástica a renda das pessoas”.
Dos Estados Unidos, os europeus estavam acostumados a receber conselhos (quando não a mão amiga) para contornar as crises. O que assistiram, porém, no início da última semana na tevê foi a imagem de um presidente americano cabisbaixo, desanimado, admitir em plena campanha que se tornou o “azarão” das próximas eleições. Importante, mesmo, foi Obama admitir francamente que seus baixos índices de popularidade são consequência do estado da economia neste final de mandato: “Os eleitores não estão melhores hoje que há quatro anos. Conseguimos um progresso contínuo para estabilizar a economia, mas a taxa de desemprego ainda é muito alta”.
Um esforço para estabilizar que custou mais de 1 trilhão de dólares despejados nos cofres dos bancos para salvá-los da quebra, na crença de que o sistema financeiro retribuiria irrigando com créditos o setor produtivo. A esperança era de que o dinheiro do contribuinte seria usado para financiar a retomada dos investimentos na indústria e da atividade comercial, voltando a estimular o consumo e com isso a recuperação do nível de emprego.
Nada do que se esperava aconteceu, como se sabe. Em contraste, formou-se aquele circuito tenebroso: sem a expectativa de melhora da demanda interna em razão da manutenção de altos níveis de desemprego, as empresas simplesmente adiaram investimentos na produção e não fizeram novas contratações de mão de obra, um circuito que se autoalimenta e habitualmente conduz à recessão econômica.
O Brasil, é sempre bom lembrar, escolheu logo no início da crise outro caminho, até certo ponto surpreendente, mas que se revelou extremamente virtuoso: sem perder muito tempo com a sofisticação de modelos, o presidente Lula dirigiu-se diretamente ao consumidor brasileiro e, na linguagem que cada um de seus milhões de eleitores compreendeu rapidamente, exortou-os a continuar consumindo: “Se você deixar de ir ao mercado ou às lojas, se parar de comprar com medo de perder o emprego, aí então é que vai ficar sem emprego, porque a empresa vai deixar de produzir se não tiver para quem vender”.
Todos sabem que funcionou e o comportamento da economia brasileira para vencer a crise de 2008/2009 mantendo os níveis de emprego, a renda salarial e o consumo interno em crescimento, é reconhecido mundialmente como extraordinariamente bem-sucedido. Hoje o nosso ex-presidente continua sendo admirado como “o cara”, que intuiu que a saída da crise estava na manutenção dos empregos e da renda dos salários, mais do que a salvação da banca.
Curiosamente é Obama, o criador do honroso apelido, quem hoje faz também uma espécie de mea culpa por demorar quatro anos para entender a mensagem de seu então “colega”, o trabalhador Luiz Inácio Lula da Silva.

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Delfim Netto é economista, formado pela USP e professor de Economia, foi ministro de Estado e deputado federal.