domingo, 28 de novembro de 2010

O pacote natalino do governo Fo-Fo: projeto praticamente revoga o Plano Diretor

Por Paulo Muzell

Juan Jose Saer, num dos seus excelentes romances, observa com ironia que o último deus do Ocidente se encarnou e se fez crucificar com apenas trinta e três anos para, no fim de tudo, possibilitar às grandes lojas e supermercados a multiplicação de suas vendas no dia do seu aniversário. Ele observa, também, que as preces foram substituídas pelas compras a crédito; a veneração dos mártires pela idolatria e a busca de autógrafos de artistas e jogadores famosos.

Eu acrescentaria que a proximidade do final do ano e do natal originou na esfera pública um outro hábito também já consagrado. Um mau hábito, diga-se de passagem. Todos os anos – quase todos os governos das três esferas, municipal, estadual e federal – enviam às suas casas legislativas seus projetos mais importante e complexos. Os famosos “pacotes natalinos”. São vinte, trinta, quarenta ou até às vezes mais matérias, muitas delas de vital importância, que são examinadas e votadas em duas ou três semanas, de afogadilho. Objetivos óbvios do expediente: tempo curto, mínima discussão, rito sumário, eventual repercussão negativa junto à sociedade menor. Fica mais fácil, assim, aprovar “maldades” que atingem muitos e “bondades” que beneficiam muito poucos, invariavelmente os mesmos.

Os dois últimos prefeitos da capital, Fogaça e Fortunati (a famosa dupla Fo-Fo, infelizmente só o primeiro compõe e nenhum dos dois canta!) não foram exceção, pelo contrário, usaram e abusaram dos pacotes natalinos. E neste final de 2010 Fortunati repetiu o rito, entregando à Câmara em meados deste mês o seu primeiro lote e neste final de novembro o volume dois, a segundo parte do seu pacote.

O conteúdo dos projetos é mais ou menos o de sempre: mudanças administrativas, criação de alguns cargos, extinção de outros – quase sempre extinção de muitos de baixa remuneração e criação uns poucos de altos salários -, alteração em conselhos municipais, dentre outros. Pois no meio desta quase três dezenas de projetos – escondido numa montanha de papéis: ofícios, justificativas, pareceres, laudos e anexos – encontramos uma verdadeira “bomba”: o projeto de lei complementar 10.

A ementa informa que ele define índice de aproveitamento para projetos de reforma ou ampliação de centros esportivos, clubes, equipamentos administrativos, hospitais, hotéis, apart-hotéis, centros de eventos, centros comerciais, shopping centers, escolas, universidades e igrejas. Já nos inciso I, II e III do artigo 1º são fixados os índices de aproveitamento de 1,5, 2 e 3, respectivamente, dependendo da Unidade de Estruturação Urbana (UEU) onde se localiza o empreendimento. Na prática a elevação dos índices de aproveitamento dos terrenos permitirá que se amplie a área atual construída em 50%, 60% e até acima dos 100%!

Significa dizer que, por exemplo, se um shopping hoje instalado em uma zona com índice aproveitamento de 1,3, resolver ampliar suas instalações, dependendo da sua localização, poderá mais que duplicar sua área atual, sem pagar um tostão para adquirir índices construtivos e sem que a Prefeitura estabeleça condicionantes à aprovação dos projetos: limite de densidade demográfica, capacidade de suporte da infraestrutura (energia, água, esgoto, coleta de lixo) ou qualquer avaliação do impacto sobre o sistema viário, problemas ao trânsito, dentre outros.

Este projeto é um absurdo, uma irresponsabilidade, um verdadeiro escândalo. É a revogação do plano diretor recentemente aprovado, que estabeleceu outros parâmetros para o regime urbanístico – alturas das construções, taxas de ocupação e índices de aproveitamento dos terrenos -, supostamente com base em estudos técnicos. Como explicar que, poucos meses depois do início de sua vigência índices aprovados já não valem mais, são profundamente alterados num mero “canetaço”?

Esta barbaridade poderá ser requerida à Prefeitura até a data de 31 de dezembro de 2011 e tem uma única justificativa, extremamente lacônica: “estímulo ao evento Copa 2014”. Perguntamos: o que tem a ver a ampliação de um centro comercial, de uma escola, de uma universidade ou de uma igreja com a realização de um ou dois jogos da Copa que serão disputados em Porto Alegre no mês de junho de 2014? Por uma questão de pudor deveria o governo municipal encontrar uma justificativa mais plausível e convincente para realizar esta brutal transferência de patrimônio público para satisfazer os interesses da indústria da construção civil.

*artigo publicado originalmente no blog rsurgente, em 25/11/10.

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