sábado, 25 de fevereiro de 2012

Política e devoção

publicado em Zero Hora, em 25/02/12.

por Marcelo Garcia da Cunha*

O resguardo ao livre fluxo de ideias e convicções, respeitando a diversidade de pensamento, é, sem dúvida, um dos mais caros princípios dos Estados amparados na soberania popular e na distribuição equitativa do poder. Não é por outro motivo que a inviolabilidade à liberdade de crença e o direito ao livre exercício dos cultos religiosos estão entre as garantias fundamentais da Constituição Federal. Retratam o estágio da evolução democrática de um país historicamente marcado por atos supressivos dos direitos da cidadania, principalmente aqueles que fazem parte da consciência coletiva e individual.

À vista das diretrizes constitucionais, é vedada a interferência do Estado nos assuntos que dizem respeito à fé e aos cultos do cidadão, mas a regra recíproca, que sobressai da ordem inversa dessa afirmação, também encontra legitimidade constitucional.

Notícia veiculada em Zero Hora no dia 19 de fevereiro dá conta de que a bancada religiosa do Congresso vem barrando iniciativas políticas que se opõem a seus princípios morais. Nesse sentido, projetos vinculados à legalização do aborto e ao combate à homofobia sofrem o revés dos parlamentares evangélicos.

Penso que a associação entre atos políticos e convicções de cunho religioso é uma fórmula que não condiz com o modelo atual de Estado democrático. Guardadas as devidas proporções, o exemplo dos Estados fundamentalistas, governados por dogmas e normas que fogem à razão prática e sob severas restrições aos direitos humanos, revela o quanto são falhos os sistemas políticos teocráticos.

Nossa Constituição Federal não oficializa qualquer crença religiosa, até porque se o fizesse estaria, em contrapartida, relegando todas as demais crenças professadas por uma sociedade multiculturalista. Dos integrantes dos poderes da República, e isso inclui nossos representantes no parlamento, exige-se, nessa temática, equilíbrio e equidistância. Na função pública, devem observância à opção do legislador constituinte por um Estado laico.

A atuação dos órgãos diretivos e decisórios da sociedade em que vivemos deve ser caracterizada por uma postura isenta de preceitos religiosos, sob pena de assumir uma vinculação dogmática que inclusive contraria a diversidade acolhida na própria Constituição Federal.

Espera-se, portanto, que não haja sobreposição de questões absolutamente distintas. Enquanto os templos são os lugares reservados aos assuntos sagrados, as casas legislativas, por outro lado, devem limitar-se ao debate dos relevantes temas sociais sempre sob o ponto de vista essencialmente político.
*Advogado e mestre em Direito pela PUCRS

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