domingo, 29 de maio de 2011

O capitalismo não é mais aquele, mas ainda não é outro

por Éneas de Souza, extraído do Blog Sul21 de 28/05/11

1) A grande crise mundial está entrando numa nova fase. De um lado, porque a economia está caminhando por pedras adversas e, de outro, porque agora, após a pólvora da crise financeira americana e européia, temos o fósforo aceso da crise fiscal, se espalhando por todo o conjunto Estados Unidos-Europa. Vendo as imagens contundentes da “revolução espanhola” da semana passada, a gente percebe que elas se juntam àquelas das populações da Grécia, de Portugal, da Islândia, da Irlanda – não citando Itália e França – que revelam tristes pontos de desespero e de revolta na realidade presente. A desfaçatez da fração de classe do capital financeiro é absoluta, pois suas instituições financeiras quebraram e foram salvas em detrimento do capital produtivo e dos assalariados. E depois de salvos, passaram a atirar contra o Estado e contra as conquistas sociais. E a coisa nesse nível é muito complicada, as práticas do capital financeiro são vorazes, predatórias e corruptoras e tentam, de todo o jeito, vender a mercadoria do neoliberalismo para resolver a multidão de crises, inclusive a crise política da decadência americana.
2) Assim, nos fixemos nos Estados Unidos. Lá, as finanças têm representantes nos principais órgãos econômicos do Estado, têm lobbies fortíssimos no Congresso Nacional, financiam as campanhas políticas de deputados, senadores e candidatos a cargos executivos. E através de sua aliança com a grande mídia – a verdade mais mentirosa do planeta – conseguem criar a ideologia do vencedor e que o valor das coisas tem o perfume e a cor do dinheiro. Exacerbam o que um dia Marx chamou do fetichismo da mercadoria, criando um ambiente de negócio e de vale tudo na sociedade. Nessa atmosfera, assumem a liderança dos capitais com uma hegemonia indiscutível. Apenas é preciso salientar e reforçar a idéia de que a crise econômica de 2007 não foi apenas financeira, mas foi também produtiva. E foi produtiva porque o padrão industrial e tecnológico dessa fase do capitalismo terminou. Está em curso a transição para um novo padrão baseado nas tecnologias de comunicação e informação, com mudanças e metamorfoses possíveis na infraestrutura energética.
3) Só que essa passagem depende de vários aspectos, entre eles: (I) o apoio do Estado para o financiamento em larga escala às diversas indústrias que virão para preencher esse novo padrão; (II) a mudança na estrutura de poder da sociedade e, consequentemente, do Estado; (III) o resgate de Estados altamente endividados, de tal modo que se restabeleça a capacidade desses de financiar as mudanças estruturais do próprio capital, levando, inclusive, a uma nova hegemonia da esfera produtiva; (IV) o retorno de uma política macroeconômica global, envolvendo política industrial, política tecnológica, política salarial, política de rendas, política agrícola e agrária, política financeira, política fiscal, etc. e (V) a submissão das finanças à sociedade, através de uma alteração profunda no controle desses capitais, principalmente, no estabelecimento de novas regras e no retorno a uma regulação financeira adequada. (Vários itens terão que ser encaminhados nesse teor: novos requerimentos de capitais para as instituições financeiras, uma regulação prudencial para proteger o sistema de novas crises, um controle efetivo do sistema bancário, um controle de perto do shadow banking  system, um controle atento e restritivo quando for necessário dos produtos financeiros a serem comercializados, uma definição mais rigorosa e mais exata de regras contábeis para as instituições financeiras, etc.). O que não se pode esquecer é que o desenvolvimento da democracia com a presença da sociedade é uma das condições que é companheira dessas transformações, porque permite a presença dos trabalhadores e outros grupos sociais nas negociações da economia, da política e do bem estar da sociedade.
4) Assim, cabe dar ênfase no seguinte: a crise econômica se desdobrou como uma flor maligna da crise financeira e foi lavrando as estruturas sociais. Foi chegando, foi batendo, foi atingindo inúmeras camadas sociais, com uma companheira socialmente perturbadora, a crise produtiva. E as duas se vestiram de crise política, desembocando num forte desemprego em muitos lugares do mundo. Veja-se a Espanha com 25% de desemprego geral (e, particularmente, com 45% entre os jovens). Só que a crise financeira desembocou, desde logo, numa crise fiscal, presente muito fortemente nos Estados Unidos e avassaladoramente cruel nos Estados europeus. Apenas a Alemanha parece um pouco mais confortável. Ou seja, a grande concorrência entre os capitais (seja financeira e/ou produtiva) atravessa agora a competição interestatal. O que significa duas coisas: em primeiro lugar, uma violenta competição entre os capitais nas finanças, na produção e nos serviços, dando prosseguindo a um vasto processo de concentração e centralização de capital; e, em segundo lugar, uma disputa intensa entre os Estados para recondicionar a sua participação na nova geopolítica mundial que apenas está se formando. Ou seja, a crise está e se encaminha para uma nova fase, onde os confrontos econômicos e políticos vão favorecer a um clima tenso e rascante na sociedade mundial. E a conjugação deles tem a potencialidade de elevar as discórdias a novos pontos de vibração inquietantes, até que uma solução – ou a terra – esteja à vista.
5) O contraponto geopolítico e geoeconômico dessa crise é certamente a China. Porque a China, com um Estado forte, tem conseguido reformar a sua economia, a sua sociedade e tem enfrentado os Estados Unidos de uma forma muito astuta, questionando-o em situações candentes: o dólar como moeda de reserva mundial, a política inflacionária americana, a gestão da recuperação econômica em detrimento de outros países (o que não exclui a própria contribuição chinesa). Enquanto fustiga por esses caminhos o seu adversário, a China faz algumas ações concretas na direção de uma nova política industrial, de um apoio muito forte e constante às suas inovações tecnológicas, de uma busca mais perseverante na renovação de sua matriz energética. Claro, essas atividades fazem parte da ação do dragão chinês na reformulação de sua política econômica, agora centrada também na reorganização econômica e produtiva do Sudeste Asiático em torno dela, fato que fortalece sua moeda, preparando-a, para num médio prazo, converte-la em moeda internacional. Pode-se observar igualmente que uma desaceleração recente na economia chinesa tem conseqüências estratégicas nos Estados Unidos, já que afeta e bloqueia o crescimento das exportações americanas. Dito de outra forma, a China está cada vez mais ativa no plano econômico, mas com escaladas geopolíticas progressivas nas suas relações com a África, com a América Latina, sem deixar de avançar uma política face à Europa, visando contrabalançar a longa influência americana, mas principalmente para absorver tecnologias decisivas para o seu desenvolvimento. O que quer dizer, a China, para o bem ou para mal, é um pólo dinâmico da nova mundialização.
6) Dessa forma, a gestação de um pólo oposto aos Estados Unidos começa a se formar, cada vez com mais força. O que significa apontar para o decréscimo americano, que ocorre por seus travamentos internos: finanças, governo de Obama em fase de recuperação para as eleições de 2012, incapacidade dos Estados Unidos de começar a transição de um padrão produtivo para outro. Tudo isso é contrabalançado por uma ascensão da China. O que significa que a passagem da geopolítica da unipolaridade para a bipolaridade está se fazendo. Cada vez é mais nítido que as forças que impelem a economia a subir vêm da China e aquelas que são decrescentes brotam dos Estados Unidos e da Europa (salvo a Alemanha). Mas, como já vimos defendendo aqui, essa nova polaridade nos parece que virá acompanhada de uma multipolaridade que comporá a nova figura. Isso porque, o desenvolvimento econômico dos emergentes trouxe pelo menos uma nova trindade que vai participar do jogo: Brasil, Índia e Rússia. Todos vão se inserir na nova divisão internacional do trabalho, naturalmente a partir das potencialidades de suas formações econômicas. O caso brasileiro é muito visível: estamos prontos para viajar na matriz energética com as conquistas do pré-sal, avançar no fornecimento de matérias primas e desenvolver uma exportação vigorosa nos produtos alimentares. E para que possamos crescer e ampliar o desenvolvimento da nossa sociedade será indispensável uma política industrial e uma política de ciência e tecnologia bem concebida, para que se esteja blindado economicamente, evitando cair na posição da Argentina no século XX. E com essa estratégia, o Brasil vai acumular poder para oscilar numa vinculação flexível frente à China e frente aos Estados Unidos. Parece, no olhar de agora, que nosso movimento é mais econômico com aquela e mais político com esse.
7) Encerrando essas observações, o analista encontrou uma forte crise econômica que se desdobra numa crise política, crescendo como serpente eriçada. A primeira, entrando numa fase aguda por causa da crise fiscal, e a segunda, desembocando num processo de formação de uma dualidade Estados Unidos e China. Nesse ponto, pode-se dizer que, por incrível que pareça, o assassinato de Bin Laden está permitindo que Barak Obama possa lançar uma nova política para o Oriente Médio. E constituir uma das bases da geopolítica vindoura, do face a face e do esconde-esconde com a China. Ou seja, finalmente a era Bush começa a ser ultrapassada. E, portanto, se os americanos se encontram em fase crítica na sua dinâmica econômica, no campo da política internacional, eles esboçam um passo para avançar na calçada muito delicada da competição entre os Estados. Dito de outra forma: a incerteza se mistura por toda parte, mas não se pode dizer que não haja movimento. Só que não sabemos se os movimentos destrutivos são maiores que os criativos. De qualquer forma, o mundo tem USA-China em disputa, como tem distintos emergentes em continuada ascensão. Para a tentativa de coordenação global está na arena o G-20, que, se não atenua os interesses conflitivos entre os países, permite, ao menos, algum fórum de negociação. Pois a metamorfose da geopolítica mundial, além de passar por concordâncias e divergências, deve também incluir na sua trajetória, à medida das necessidades e da evolução da configuração geopolítica, a alteração de antigas e a constituição de novas instituições com a finalidade de uma regulação das múltiplas facetas de uma nova etapa da mundialização. Será a tentativa de regrar o novo se desembaraçando do velho. O problema é que para chegar à aurora é preciso passar pelos perigos nada românticos do crepúsculo de um padrão econômico e político. E a questão é que ainda é noite, o neoliberalismo tenta descobrir forças para um último suspiro, a última bebida na madrugada. Mesmo assim, o panorama é claro: o capitalismo não é mais aquele, mas ainda não é outro.
Será outro?

terça-feira, 24 de maio de 2011

Por uma esquerda criativa


por Paulo Wayne


Ótimo que todos os homens comam; melhor que todos tenham saber. Que gozem todos os frutos do espírito humano, porque o contrário é serem transformados em máquinas a serviço do Estado, convertidos em escravos de uma terrível organização social.
Frederico Garcia Lorca

Apesar da crise teórica que vive desde meados do século passado a esquerda construiu, nos últimos vinte anos, variadas e ricas experiências seja através dos governos ou dos movimentos sociais. Nenhuma delas foi, ainda, suficientemente analisada pelos pensadores de esquerda e, também, quaisquer delas produziram uma síntese capaz de orientar o movimento revolucionário.
A maioria destas experiências foi construída por organizações que se reivindicam socialistas e que tem nas contribuições de Gramsci sua principal referência, notadamente, o conceito de hegemonia.
Não obstante os êxitos sociais, econômicos e políticos alcançados, seja através da melhor distribuição da riqueza, do estabelecimento e garantia de direitos, estas experiências tem se demonstradas limitadas no que tange aos embates hegemônicos travados pelas classes sociais antagônicas.
Não se vislumbra nos horizontes destas experiências a superação do capital. Deixam intocável a exploração e a alienação.  Isso ocorre, em boa parte, não por falta de vontade política, mas por insuficiência teórica. Assim, governamos e mobilizamos milhares, mas somos conduzidos pela lógica do capital.  Em uma espécie de “consentimento passivo” para usar um conceito de Gramsci. Parece vivermos em um mundo tedioso e monótono. Sem alternativas.
                Um dos problemas destas experiências é que tem centrado suas políticas de desenvolvimento social , tanto nos governos como nos movimentos, quase exclusivamente na dimensão produtiva. Essa perspectiva de que a conquista do bem-estar social é decorrente da  prosperidade econômica é um equivoco, como bem aponta Danilo de Miranda, “o desenvolvimento econômico conseguido, e às vezes até expressivo, ele não é capaz de eliminar as contradições e desigualdades sociais e é insuficiente para a transformação social”.
Secundarizam , assim,  as demais dimensões das satisfações humanas.  Portanto, um projeto de humanidade incompleto e, por conseqüência, incapaz de se tornar universal.
                Negligenciam as questões que o capital não tem, por sua natureza, como resolver que é a liberdade e o prazer. Ainda idolatramos o trabalho. Alienante por essência, portanto, escravizador, e louvamos o sacrifício ante o gozo. Aqui, esquecemos do ensinamento da natureza.  Ela obriga-nos a perpetuar a espécie e constantemente a repor nossas energias, mas tornou essas ações/obrigações extremamente prazerosas para que as possamos cumprir.
                Na década noventa as forças de esquerda, principalmente, após a derrubada dos regimes dos países do “Socialismo Real”, optaram pela luta institucional. Não há problema nesta opção. A questão é que adotaram um discurso e uma prática de legitimação da institucionalidade vigente, ou seja, não questionam os valores e a lógica que a formatou e a sustenta. Limitaram sua imaginação política ao que “há no mundo”.
Deixaram de fazer as tão necessárias denúncias do modus operandi  ( articulação da disputa política e representação de interesses) e da incapacidade de avanços sócio-econômicos e democráticos significativos em sociedades construídas sob a hegemonia do capital. Não formulam e, portanto, não reivindicam o estabelecimento de novos direitos.
                Enfim, estas experiências, ainda que ricas e variadas, não produziram valores capazes de rivalizar com aqueles que asseguram a acumulação e reprodução do capital. Tem se limitado a “boa gestão” e a “inclusão social”.   Como se a época das “grandes narrativas” houvesse findado ou, como bem sintetiza Francisco de Oliveira: “Nos termos de Marx e Engels, da equação força+consentimento que forma a hegemonia desaparece o elemento força. E o consentimento se transforma em seu avesso: Não são mais os dominados que consentem em sua própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, com a condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista”.
                De outra parte as organizações que conduzem estas experiências têm se burocratizado e privilegiado a “pequena política”. Tornando-se cada vez mais organizações/movimentos “sem qualquer sofisticação política” como diria Weber. Reafirmam, com suas práticas, uma concepção de política como disputa de elites, e não como ação de maiorias.
                A esquerda perdeu a criatividade.  Não faz política como arte.
                A superação deste estado de coisas só se dará através da constituição de processos criativos coletivos. Não há mais espaço para “guias” seja ele um partido ou um intelectual genial. Todo processo revolucionário sempre foi antecedido de ricos e diversos surtos sociais criativos em todas as dimensões da existência humana.
                Algo semelhante com o que foi formulado por Goethe: “uma comunidade com outros como nós mesmos, a fim de que sejamos capazes de criar em comum uma frente contra o mundo”.
                Portanto, a tarefa da esquerda, principalmente, quando ocupa posições no estado deve ser constituir governos permeados de processos criativos coletivos que busquem superar a alienação e a exploração. Para tanto tem que investir pesadamente em políticas de cidadania cultural, de participação popular e novos modos de produção.
                Uma política cultural pensada e estruturada não apenas na fruição, produção e centrada nas belas-artes, mas, sim, privilegiando os processos criativos.  Para tanto, deve ser ofertado espaços públicos de diversidade e experimentação, não hierarquizados e com o mínimo de institucionalidade. Por óbvio temos que manter as casas de cultura, os museus, teatros, cinemas, preservar a memória, a cultura popular, etc... Mas uma política cultural que pretenda avançar para além do fazer tradicional tem que investir no processo de criação que dialogue com todas as esferas da vida social. A cultura como experiência e criação humana.
                Criar e apoiar redes criativas de participação para além das questões de governo, capazes de gestar uma nova institucionalidade que garanta uma organização social mais justa e que permita maior espaço para a autonomia dos indivíduos.
                Estimular modos de produção que comecem, mesmo que de forma embrionária e simbólica, a apontar a possibilidade de novas estruturas socioeconômicas.
                Por último, ressalto, a necessidade de se debruçar sobre o importante debate travado entre Slavoj Zizek e Tony Negri sobre a relação entre movimentos e governo.
                Este artigo, se assim o posso  chamar, foi escrito de forma açodada, em uma tarde preguiçosa. Portanto, contém uma série de imprecisões e insuficiências que pretendo sanar em um texto de maior fôlego e com maior tempo de elaboração. Principalmente, no que se refere a natureza subversiva dos processos criativos coletivos.

Direitos e privilégios na social-democracia


 por Tarso Genro*

As conquistas sociais-democratas do pós-guerra inspiraram, ainda que de maneira diversa, as legislações de proteção social e seguridade. O que se denomina de crise do Estado de bem-estar (a social-democracia sem fundos públicos) originou-se tanto de uma absoluta irracionalidade da nova ordem mundial – a guerra fria –, que voltou os Estados para brutais despesas de guerra e de custosos aparatos de luta contra a “subversão”, quanto de uma crescente transferência de renda para as camadas superiores da sociedade – cada vez mais ricas, especialmente as que puderam acumular através do sistema financeiro “rentista”, que promoveu ondas de acumulação “sem trabalho”.

Esta é a crise da social-democracia, que agora na Europa é assediada por gigantescas manifestações públicas, que se opõem a já provada falência dos remédios do Fundo Monetário Internacional: ajustes que cortam salários, pensões, aposentadorias, promovem a recessão, cortam programas sociais e aniquilam políticas públicas de inclusão. Os trabalhadores do setor público, os assalariados em geral, os imigrantes que buscam trabalho nas antigas potências coloniais, os jovens sem perspectiva de emprego e de trabalho que paguem a conta. Aceitarão pagar?

É isso que se disputa, agora, na Itália, na Grécia, em Portugal, na Espanha e, logo, também na França. Seus governos de esquerda e de centro-esquerda foram incompetentes para fazer reformas que viabilizassem a manutenção, pelo setor público, tanto dos direitos dos trabalhadores do serviço público quanto dos investimentos em infraestrutura, ciência e tecnologia, que interessam a toda a sociedade. Como os governos não souberam negociar e acumular, politicamente, para reformar mantendo direitos, agora o “mercado” faz as reformas, a seu gosto, liquidando direitos.

É espantoso que os servidores públicos do Estado que ganham salários modestos vejam as lideranças do pequeno grupo dos altos salários promoverem uma campanha contra a proposta do governo que busca uma pequena contribuição, destes, para os fundos públicos da previdência estatal. Fundos que visam manter os direitos de todos e, assim, interromper uma crise de financiamento que, se não for resolvida, a médio prazo, inviabilizará todo o sistema do IPE, cortará salários, aposentadorias, pensões, transformando o RS, financeiramente, num “grande Portugal”.

Alegam, as lideranças deste grupo de servidores, que, aumentando a sua contribuição, estão “pagando a conta”. Como se isso fosse uma novidade. Os assalariados e consumidores, públicos e privados – todos, sem exceção –, que movem o consumo, que pagam impostos nas mercadorias que compram, que pagam imposto de renda, que estão dentro ou fora do regime geral da previdência, é que sempre pagam todas as contas. Por quê? Porque todos os impostos, taxas, contribuições que o setor privado apenas “transfere” para o Estado vêm sempre de todos eles. É daí que se originam os fundos públicos, que pagam as contas do serviço público, inclusive os salários dos servidores e as suas aposentadorias integrais.

Não somos daqueles que acham que os servidores melhor remunerados do Estado, pela qualidade técnica, científica ou institucional do seu trabalho, são os culpados pela falência do atual sistema, que os coloca a anos-luz de distância dos demais mortais. Esta hierarquia salarial reproduz, em parte, as distâncias existentes na própria escala salarial da iniciativa privada. Nem achamos que as suas conquistas sejam, sempre, privilégios. O que defendemos é que está na hora – para que os seus direitos e conquistas sejam mantidos – de que algum sacrifício venha de quem pode mais e não dos que ganham menos e cumprem (como por exemplo os servidores da área da educação) funções tão importantes como as deles.

Social-democracia sem fundos leva para mais endividamento. Mais endividamento leva para mais enfraquecimento do Estado público. Mais enfraquecimento do Estado público leva para privatizações “arrojadas” de tudo quanto é público, principalmente para a destruição do serviço público, sempre apontado como vilão em horas de crise. É isso que o nosso Plano de Sustentabilidade Financeira quer evitar.


*Governador do Rio Grande do Sul

publicado em Zero Hora de 23 de maio de 2011



Radicalismo e radicais


publicado originalmente no Correio do Povo, de 22/05/11.

por Juremir Machado

 


<br /><b>Crédito: </b> ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER


Durante muito tempo, anos, ouvi a mídia chamar de radical gente como Luciana Genro, Maria do Rosário, Raul Pont e Henrique Fontana. De tanto ouvir, eu até acreditava. Eram sempre os mesmos aplicando os mesmos rótulos às mesmas pessoas. Devia ser só uma coincidência, mas os conservadores, talvez por amizades com bons patrocinadores ou por poderem eles mesmos patrocinar, tinham mais espaço para etiquetar seus oponentes. Com o passar dos anos, fui percebendo que os ditos radicais só o eram talvez no sentido de que iam à raiz das coisas. Ou sejam, lutavam com unhas e dentes por suas ideias. Quase sempre, boas ideias. Por coincidência, ideias que contrariavam interesses seculares defendidos com voz macia por fanáticos (radicais?) dispostos a nada ceder.

Vejamos o caso de Luciana Genro. Conheço poucas pessoas tão coerentes, determinadas, inteligentes e desapegadas. Quanto o PT chegou ao poder, ela poderia ter navegado na onda e descolado um cargo de ministra ou coisa parecida. Manteve-se firme nas suas convicções. Foi expulsa. Consegue manter ótima relação com o pai, Tarso Genro, apesar das divergências políticas, sinal de alta inteligência emocional. Na última eleição, fez quase 130 mil votos. Não foi eleita. Entrou candidato com menos de 30 mil votos. Ninguém vai me convencer que esse sistema é justo. Concordando-se ou não com a ideologia de Luciana, ela é um exemplo de luta, de garra e de convicções. O mesmo vale, com suas especificidades e escolhas, para Maria do Rosário, Raul Pont e Fontana. Cometem erros? Imagino que sim. Procuram adaptar-se? Certamente. Contradizem-se? Só não o faz quem está morto. É isso aí.

As suas contradições são maiores do que as dos seus oponentes? Duvido. Quem é mais radical, Luciana Genro ou a senadora ruralista Kátia Abreu, que não quer saber de reserva legal nem de áreas de proteção permanente nas propriedades rurais? Quem é mais radical, Raul Pont ou Jair Bolsonaro? Quem é mais radical, Mari a do Rosário ou Ronaldo Caiado? Quem é mais radical, Henrique Fontana ou Jorge Bornhausen ou Índio da Costa, aquele que foi vice na chapa de José Serra e arrastou o tucano para a direita? Já sei que alguns dirão que sou petista. Não sou. Admiro Luciana Genro, do PSol. Admiro Maria do Rosário, do PT. Admiro Beto Albuquerque, do PSB. Admiro Fernando Gabeira, do PV. Admiro Ana Amélia Lemos, do PP. Admiro o PMDB pelo papel que desempenhou durante a ditadura. Aprendi que os mais radicais costumam ser aqueles que desqualificam constantemente os outros chamando-os de radicais. Precisamos de bons radicais.

Sempre admirei o mais genial dos radicais gaúchos, Leonel Brizola, o homem que garantiu a posse de João Goulart, em 1961, de metralhadora no ombro e discurso na Rede da Legalidade. Tenho mais medo dos que se apresentam como sensatos e moderados. Não raras vezes são radicais dissimulados prontos para pedir cabeças nos bastidores e degolar quem os incomoda. Contra os "radicais", em 1964, os militares que se achavam sensatos impuseram ao Brasil uma ditadura radical, que prendeu, torturou e matou.

Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br

Monteiro Lobato e a sua obra "polêmica"



 extraído do boletim da SEPPIR, de 24/05/11

por Zulu Araújo


No próximo dia 25 de Maio, celebra-se no mundo inteiro o Dia da África, data em que foi fundada a Organização da União Africana (OUA), que tinha e tem como objetivo maior o desenvolvimento do continente africano. Inicialmente pensei em escrever sobre o significado desta data para o Brasil e fazer uma breve reflexão sobre como o Governo brasileiro, ano passado, saudou este dia, por meio da realização do II Encontro Afro Latino, evento que contou com a presença de 12 países latino-americanos e 05 organizações internacionais, dentre elas a Unesco e centenas de intelectuais e ativistas afro latinos. Mas, ao abrir o Jornal O Globo, fiquei estarrecido de tal forma, que resolvi meter o bedelho, não científico, no que a grande imprensa e alguns letrados brasileiros chamam de "polêmica" sobre a obra de Monteiro Lobato.
Quando, em outubro de 2010, o Conselho Nacional de Educação fez recomendações para o uso de notas explicativas sobre o uso da obra de Monteiro Lobato nas escolas, devido aos estereótipos e conteúdos racistas, não dei muita importância por considerar que era chover no molhado. Mas, jamais imaginei a gravidade do assunto. Só depois que li a magnifica "Carta Aberta" de Ana Maria Gonçalves ao cartunista Ziraldo, seguramente o maior libelo no combate ao racismo institucional dos últimos tempos, é que me dei conta. Ao ler a opinião de Monteiro Lobato sobre a Ku Klux Kan, que reproduzo abaixo, fiquei estupefato!
Vejam o que diz o nosso ilustre escritor sobre o Brasil
- "País de mestiços onde branco não tem força para organizar uma Ku Klux Kan é pais perdido para altos destinos... Tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem a capacidade construtiva".
Não vou aqui repetir os demais argumentos usados pelo escritor para destilar o seu ódio aos negros e a mestiçagem, que a matéria do O Globo cita, pois o texto acima é revelador em si mesmo do que pensava Monteiro Lobato. O que me chama atenção é que, apesar de evidências tão fortes e pujantes, ainda assim, existem figuras eminentes da inteligentsia brasileira que as titulam de " ideias polêmicas". Aliás, virou moda nos últimos tempos taxar de polémico, tudo aquilo que é condenável aos olhos dos direitos humanos e da igualdade racial. No meu entendimento não há qualquer polêmica no texto de Monteiro Lobato, há sim, uma afirmação clara da sua admiração e concordância com os métodos utilizados por uma das instituições mais racistas e cruéis da história da humanidade. Tão cruel, que mesmo nos Estados Unidos, um país sabidamente segregacionista, ela foi banida formalmente no ano de 1872, por ser reconhecida como uma entidade terrorista.
Um outro argumento largamente utilizado pelos que defendem o uso da obra de Monteiro Lobato "ipsis litteres" é de que não podemos abrir mão ou censurar um escritor tão talentoso por conta de algumas diatribes que ele por ventura tenha feito na sua existência. Diatribes simples e inocentes como defender, escrever e estimular o racismo e a pratica racista, por meio da eugenia, como solução para o Brasil. E que não digam que era o contexto histórico que o levou a ter estas posições. Como afirmei anteriormente, desde o final do século 19, a Ku Klux Kan, já era considerada uma instituição criminosa. Portanto, este argumento é tão pueril e insidioso que pode levar o público imaginar que nós, os "politicamente corretos", "chatos" e "criadores de caso" estaríamos contra o talento e os talentosos. Como se racistas, nazistas ou fascistas não pudessem ser talentosos. Sendo assim, por que não reabilitarmos Goebbels, Mengele ou Eichmann, afinal, apesar dos crimes hediondos que cometeram eles também eram reconhecidamente talentosos.
Enfim, o que desejamos para o Brasil, na celebração do Dia da África, e em particular para as nossas crianças e adolescentes é que elas não sejam vítimas deste olhar e desta ideia que grassou e criou raízes no Brasil, de que os descendentes de africanos são burros, feios, incompetentes e responsáveis por todos os males que o país possui. Mais que isso, que o Brasil deixe de tratar esta questão de forma hipócrita e reconheça, definitivamente, que 400 anos de escravidão só serão superados se formos corajosos o suficiente para enfrentarmos o crime de lesa humanidade que aqui foi cometido com serenidade, firmeza e generosidade.
Toca a zabumba que a terra é nossa!

Zulu Araújo é arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro. Foi Diretor e Presidente da Fundação Cultural Palmares (2003/2011).

Carta aberta ao Ziraldo


Peguei-o para bode expiatório, Ziraldo? Sim, sempre tem que ter algum. E, sem ódio, espero que você não queira que eu morra por te criticar. Você disse que "os americanos odeiam os negros, mas aqui nunca houve uma organização como a Ku Klux Klan". Se dependesse de Monteiro Lobato, o Brasil teria tido sua Ku-Klux-Klan, Ziraldo.
Publicado originalmente no Biscoito Fino e a Massa

Caro Ziraldo,
Olho a triste figura de Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, estampada nas camisetas do bloco carnavalesco carioca "Que merda é essa?" e vejo que foi obra sua. Fiquei curiosa para saber se você conhece a opinião de Lobato sobre os mestiços brasileiros e, de verdade, queria que não. Eu te respeitava, Ziraldo. Esperava que fosse o seu senso de humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos, e por breves momentos até me senti vingada. Vingada contra o racismo do eugenista Monteiro Lobato que, em carta ao amigo Godofredo Rangel, desabafou: "(...)Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!..." (em "A barca de Gleyre". São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).

Ironia das ironias, Ziraldo, o nome do livro de onde foi tirado o trecho acima é inspirado em um quadro do pintor suíço Charles Gleyre (1808-1874), Ilusões Perdidas. Porque foi isso que aconteceu. Porque lendo uma matéria sobre o bloco e a sua participação, você assim o endossa : "Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa brincadeira de achar que a gente é racista". A gente quem, Ziraldo? Para quem você se (auto) justifica? Quem te disse que racismo sem ódio, mesmo aquele com o "humor negro" de unir uma mulata a quem grande ódio teve por ela e pelo que ela representava, não é racismo? Monteiro Lobato, sempre que se referiu a negros e mulatos, foi com ódio, com desprezo, com a certeza absoluta da própria superioridade, fazendo uso do dom que lhe foi dado e pelo qual é admirado e defendido até hoje. Em uma das cartas que iam e vinham na barca de Gleyre (nem todas estão publicadas no livro, pois a seleção foi feita por Lobato, que as censurou, claro) com seu amigo Godofredo Rangel, Lobato confessou que sabia que a escrita "é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente".

Lobato estava certo. Certíssimo. Até hoje, muitos dos que o leram não veem nada de errado em seu processo de chamar negro de burro aqui, de fedorento ali, de macaco acolá, de urubu mais além. Porque os processos indiretos, ou seja, sem ódio, fazendo-se passar por gente boa e amiga das crianças e do Brasil, "work" muito bem. Lobato ficou frustradíssimo quando seu "processo" sem ódio, só na inteligência, não funcionou com os norte-americanos, quando ele tentou em vão encontrar editora que publicasse o que considerava ser sua obra prima em favor da eugenia e da eliminação, via esterilização, de todos os negros. Ele falava do livro "O presidente negro ou O choque das raças" que, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, país daquele povo que odeia negros, como você diz, Ziraldo, foi publicado no Brasil. Primeiro em capítulos no jornal carioca A Manhã, do qual Lobato era colaborador, e logo em seguida em edição da Editora Companhia Nacional, pertencente a Lobato. Tal livro foi dedicado secretamente ao amigo e médico eugenista Renato Kehl, em meio à vasta e duradoura correspondência trocada pelos dois: “Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha".

Impossibilitado de colher os frutos dessa poda nos EUA, Lobato desabafou com Godofredo Rangel: "Meu romance não encontra editor. [...]. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros." Tempos depois, voltou a se animar: "Um escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o autor (...) Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais matéria de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos Estados Unidos do México e toda essa infecção spanish da América Central. O meu judeu acha que com isso até uma proibição policial obteremos - o que vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai na Inglaterra e entra boothegued como o whisky e outras implicâncias dos puritanos". Lobato percebeu, Ziraldo, que talvez devesse apenas exasperar-se mais, ser mais claro em suas ideias, explicar melhor seu ódio e seu racismo, não importando a quem atingiria e nem por quanto tempo perduraria, e nem o quão fundo se instalaria na sociedade brasileira. Importava o dinheiro, não a exasperação dos ofendidos. 2.000.000 de dólares, ele pensava, por um ovo de escândalo. Como também foi por dinheiro que o Jeca Tatu, reabilitado, estampou as propagandas do Biotônico Fontoura.

Você sabe que isso dá dinheiro, Ziraldo, mesmo que o investimento tenha sido a longo prazo, como ironiza Ivan Lessa: "Ziraldo, o guerrilheiro do traço, está de parabéns. Finalmente o governo brasileiro tomou vergonha na cara e acabou de pagar o que devia pelo passe de Jeremias, o Bom, imortal personagem criado por aquele que também é conhecido como “o Lamarca do nanquim”. Depois do imenso sucesso do calunguinha nas páginas de diversas publicações, assim como também na venda de diversos produtos farmacêuticos, principalmente doenças da tireóide, nos idos de 70, Ziraldo, cognominado ainda nos meios esclarecidos como “o subversivo da caneta Pilot”, houve por bem (como Brutus, Ziraldo é um homem de bem; são todos uns homens de bem – e de bens também) vender a imagem de Jeremias para a loteca, ou seja, para a Caixa Econômica Federal (federal como em República Federativa do Brasil) durante o governo Médici ou Geisel (os déspotas esclarecidos em muito se assemelham, sendo por isso mesmo intercambiáveis)".

No tempo em que linchavam negros, disse Lobato, como se o linchamento ainda não fosse desse nosso tempo. Lincham-se negros nas ruas, nas portas dos shoppings e bancos, nas escolas de todos os níveis de ensino, inclusive o superior. O que é até irônico, porque Lobato nunca poderia imaginar que chegariam lá. Lincham-se negros, sem violência física, é claro, sem ódio, nos livros, nos artigos de jornais e revistas, nos cartoons e nas redes sociais, há muitos e muitos carnavais. Racismo não nasce do ódio ou amor, Ziraldo, sendo talvez a causa e não a consequência da presença daquele ou da ausência desse. Racismo nasce da relação de poder. De poder ter influência ou gerência sobre as vidas de quem é considerado inferior. "Em que estado voltaremos, Rangel," se pergunta Lobato, ao se lembrar do quadro para justificar a escolha do nome do livro de cartas trocadas, "desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões". Ah, Ziraldo, quanta ilusão (ou seria petulância? arrogância; talvez? sensação de poder?) achar que impor à mulata a presença de Lobato nessa festa tipicamente negra, vá acabar com a polêmica e todos poderemos soltar as ancas e cada um que sambe como sabe e pode. Sem censura. Ou com censura, como querem os quemerdenses. Mesmo que nesse do Caçadas de Pedrinho a palavra censura não corresponda à verdade, servindo como mero pretexto para manifestação de discordância política, sem se importar com a carnavalização de um tema tão dolorido e tão caro a milhares de brasileiros. E o que torna tudo ainda mais apelativo é que o bloco aponta censura onde não existe e se submete, calado, ao pedido da prefeitura para que não use o próprio nome no desfile. Não foi assim? Você não teve que escrever "M*" porque a palavra "merda" foi censurada? Como é que se explica isso, Ziraldo? Mente-se e cala-se quando convém? Coerência é uma questão de caráter.

O que o MEC solicita não é censura. É respeito aos Direitos Humanos. Ao direito de uma criança negra em uma sala de aula do ensino básico e público, não se ver representada (sim, porque os processos indiretos, como Lobato nos ensinou, "work" muito mais eficientemente) em personagens chamados de macacos, fedidos, burros, feios e outras indiretas mais. Você conhece os direitos humanos, inclusive foi o artista escolhido para ilustrar a Cartilha de Direitos Humanos encomendada pela Presidência da República, pelas secretarias Especial de Direitos Humanos e de Promoção dos Direitos Humanos, pela ONU, a UNESCO, pelo MEC e por vários outros órgãos. Muitos dos quais você agora desrespeita ao querer, com a sua ilustração, acabar de vez com a polêmica causada por gente que estudou e trabalhou com seriedade as questões de educação e desigualdade racial no Brasil. A adoção do Caçadas de Pedrinho vai contra a lei de Igualdade Racial e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que você conhece e ilustrou tão bem. Na página 25 da sua Cartilha de Direitos Humanos, está escrito: "O único jeito de uma sociedade melhorar é caprichar nas suas crianças. Por isso, crianças e adolescentes têm prioridade em tudo que a sociedade faz para garantir os direitos humanos. Devem ser colocados a salvo de tudo que é violência e abuso. É como se os direitos humanos formassem um ninho para as crianças crescerem." Está lá, Ziraldo, leia de novo: "crianças e adolescentes têm prioridade". Em tudo. Principalmente em situações nas quais são desrespeitadas, como na leitura de um livro com passagens racistas, escrito por um escritor racista com finalidades racistas. Mas você não vê racismo e chama de patrulhamento do politicamente correto e censura. Você está pensando nas crianças, Ziraldo? Ou com medo de que, se a moda pega, a "censura" chegue ao seu direito de continuar brincando com o assunto? "Acho injusto fazer isso com uma figura da grandeza de Lobato", você disse em uma reportagem. E com as crianças, o público-alvo que você divide com Lobato, você acha justo? Sim, vocês dividem o mesmo público e, inclusive, alguns personagens, como uma boneca e pano e o Saci, da sua Turma do Pererê. Medo de censura, Ziraldo, talvez aos deslizes, chamemos assim, que podem ser cometidos apenas porque se acostuma a eles, a ponto de pensar que não são, de novo chamemos assim, deslizes.

A gente se acostuma, Ziraldo. Como o seu menino marrom se acostumou com as sandálias de dedo: "O menino marrom estava tão acostumado com aquelas sandálias que era capaz de jogar futebol com elas, apostar corridas, saltar obstáculos sem que as sandálias desgrudassem de seus pés. Vai ver, elas já faziam parte dele" (ZIRALDO, 1986,p. 06, em O Menino Marrom). O menino marrom, embora seja a figura simpática e esperta e bonita que você descreve, estava acostumado e fadado a ser pé-de-chinelo, em comparação ao seu amigo menino cor-de-rosa, porque "(...) um já está quase formado e o outro não estuda mais (...). Um já conseguiu um emprego, o outro foi despedido do quinto que conseguiu. Um passa seus dias lendo (...), um não lê coisa alguma, deixa tudo pra depois (...). Um pode ser diplomata ou chofer de caminhão. O outro vai ser poeta ou viver na contramão (...). Um adora um som moderno e o outro – Como é que pode? – se amarra é num pagode. (...) Um é um cara ótimo e o outro, sem qualquer duvida, é um sujeito muito bom. Um já não é mais rosado e o outro está mais marrom" (ZIRALDO, 1986, p.31). O menino marrom, ao crescer, talvez virasse marginal, fado de muito negro, como você nos mostra aqui: "(...) o menino cor-de-rosa resolveu perguntar: por que você vem todo o dia ver a velhinha atravessar a rua? E o menino marrom respondeu: Eu quero ver ela ser atropelada" (ZIRALDO, 1986, p.24), porque a própria professora tinha ensinado para ele a diferença e a (não) mistura das cores. Então ele pensou que "Ficar sozinho, às vezes, é bom: você começa a refletir, a pensar muito e consegue descobrir coisas lindas. Nessa de saber de cor e de luz (...) o menino marrom começou a entender porque é que o branco dava uma idéia de paz, de pureza e de alegria. E porque razão o preto simbolizava a angústia, a solidão, a tristeza. Ele pensava: o preto é a escuridão, o olho fechado; você não vê nada. O branco é o olho aberto, é a luz!" (ZIRALDO, 1986, p.29), e que deveria se conformar com isso e não se revoltar, não ter ódio nenhum ao ser ensinado que, daquela beleza, pureza e alegria que havia na cor branca, ele não tinha nada. O seu texto nos ensina que é assim, sem ódio, que se doma e se educa para que cada um saiba o seu lugar, com docilidade e resignação: "Meu querido amigo: Eu andava muito triste ultimamente, pois estava sentindo muito sua falta. Agora estou mais contente porque acabo de descobrir uma coisa importante: preto é, apenas, a ausência do branco" (ZIRALDO, 1986, p.30).

Olha que interessante, Ziraldo: nós que sabemos do racismo confesso de Lobato e conseguimos vê-lo em sua obra, somos acusados por você de "macaquear" (olha o termo aí) os Estados Unidos, vendo racismo em tudo. "Macaqueando" um pouco mais, será que eu poderia também acusá-lo de estar "macaqueando" Lobato, em trechos como os citados acima? Sem saber, é claro, mas como fruto da introjeção de um "processo" que ele provou que "work" com grande eficiência e ao qual podemos estar todos sujeitos, depois de sermos submetidos a ele na infância e crescermos em uma sociedade na qual não é combatido. Afinal, há quem diga que não somos racistas. Que quem vê o racismo, na maioria os negros, que o sofrem, estão apenas "macaqueando". Deveriam ficar calados e deixar dessa bobagem. Deveriam se inspirar no menino marrom e se resignarem. Como não fazem muitos meninos e meninas pretos e marrons, aqueles que são a ausência do branco, que se chateiam, que se ofendem, que sofrem preconceito nas ruas e nas escolas e ficam doídos, pensando nisso o tempo inteiro, pensando tanto nisso que perdem a vontade de ir à escola, começam a tirar notas baixas porque ficam matutando, ressentindo, a atenção guardadinha lá debaixo da dor. E como chegam à conclusão de que aquilo não vai mudar, que não vão dar em nada mesmo, que serão sempre pés-de-chinelo, saem por aí especializando-se na arte de esperar pelo atropelamento de velhinhas.

Racismo é um dos principais fatores responsáveis pela limitada participação do negro no sistema escolar, Ziraldo, porque desvia o foco, porque baixa a auto-estima, porque desvia o foco das atividades, porque a criança fica o tempo todo tendo que pensar em como não sofrer mais humilhações, e o material didático, em muitos casos, não facilita nada a vida delas. E quando alguma dessas crianças encontra um jeito de fugir a esse destino, mesmo que não tenha sido através da educação, fica insuportável e merece o linchamento público e exemplar, como o sofrido por Wilson Simonal. Como exemplo, temos a sua opinião sobre ele: "Era tolo, se achava o rei da cocada preta, coitado. E era mesmo. Era metido, insuportável". Sabe, Ziraldo, é por causa da perpetuação de estereótipos como esses que às vezes a gente nem percebe que eles estão ali, reproduzidos a partir de preconceitos adquiridos na infância, que a SEPPIR pediu que o MEC reavaliasse a adoção de Caçadas de Pedrinho. Não a censura, mas a reavaliação. Uma nota, talvez, para ser colocada junto com as outras notas que já estão lá para proteger os direitos das onças de não serem caçadas e o da ortografia, de evoluir. Já estão lá no livro essas duas notas e a SEPPIR pede mais uma apenas, para que as crianças e os adolescentes sejam "colocados a salvo de tudo que é violência e abuso", como está na cartilha que você ilustrou. Isso é um direito delas, como seres humanos. É por isso que tem gente lutando, como você também já lutou por direitos humanos e por reparação. É isso que a SEPPIR pede: reparação pelos danos causados pela escravidão e pelo racismo.

Assim você se defendeu de quem o atacou na época em que conseguiu fazer valer os seus direitos: "(…) Espero apenas que os leitores (que o criticam) não tenham sua casa invadida e, diante de seus filhos, sejam seqüestrados por componentes do exército brasileiro pelo fato de exercerem o direito de emitir sua corajosa opinião a meu respeito, eu, uma figura tão poderosa”. Ziraldo, você tem noção do que aconteceu com os, citando Lobato, "negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão", e do que acontece todos os dias com seus descendentes em um país que naturalizou e, paradoxalmente, nega o seu racismo? De quantos já morreram e ainda morrem todos os dias porque tem gente que não os leva a sério? Por causa do racismo é bem difícil que essa gente fadada a ser pé-de-chinelo a vida inteira, essas pessoas dos subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal, - porque nelas está a ausência do branco, esse povo todo representado pela mulata dócil que você faz sorrir nos braços de um dos escritores mais racistas e perversos e interesseiros que o Brasil já teve, aquele que soube como ninguém que um país (racista) também de faz de homens e livros (racistas), por causa disso tudo, Ziraldo, é que eu ia dizendo ser quase impossível para essa gente marrom, herdeira dessa gente de cor que simboliza a angústia, a solidão, a tristeza, gerar pessoas tão importantes quanto você, dignas da reparação (que nem é financeira, no caso) que o Brasil também lhes deve: respeito. Respeito que precisou ser ancorado em lei para que tivesse validade, e cuja aplicação você chama de censura.

Junto com outros grandes nomes da literatura infantil brasileira, como Ana Maria Machado e Ruth Rocha, você assinou uma carta que, em defesa de Lobato e contra a censura inventada pela imprensa, diz: "Suas criações têm formado, ao longo dos anos, gerações e gerações dos melhores escritores deste país que, a partir da leitura de suas obras, viram despertar sua vocação e sentiram-se destinados, cada um a seu modo, a repetir seu destino. (...) A maravilhosa obra de Monteiro Lobato faz parte do patrimônio cultural de todos nós – crianças, adultos, alunos, professores – brasileiros de todos os credos e raças. Nenhum de nós, nem os mais vividos, têm conhecimento de que os livros de Lobato nos tenham tornado pessoas desagregadas, intolerantes ou racistas. Pelo contrário: com ele aprendemos a amar imensamente este país e a alimentar esperança em seu futuro. Ela inaugura, nos albores do século passado, nossa confiança nos destinos do Brasil e é um dos pilares das nossas melhores conquistas culturais e sociais." É isso. Nos livros de Lobato está o racismo do racista, que ninguém vê, que vocês acham que não é problema, que é alicerce, que é necessário à formação das nossas futuras gerações, do nosso futuro. E é exatamente isso. Alicerce de uma sociedade que traz o racismo tão arraigado em sua formação que não consegue manter a necessária distância do foco, a necessário distância para enxergá-lo. Perpetuar isso parece ser patriótico, esse racismo que "faz parte do patrimônio cultural de todos nós – crianças, adultos, alunos, professores – brasileiros de todos os credos e raças." Sabe o que Lobato disse em carta ao seu amigo Poti, nos albores do século passado, em 1905? Ele chamava de patriota o brasileiro que se casasse com uma italiana ou alemã, para apurar esse povo, para acabar com essa raça degenerada que você, em sua ilustração, lhe entrega de braços abertos e sorridente.

Perpetuar isso parece alimentar posições de pessoas que, mesmo não sendo ou mesmo não se achando racistas, não se percebem cometendo a atitude racista que você ilustrou tão bem: entregar essas crianças negras nos braços de quem nem queria que elas nascessem. Cada um a seu modo, a repetir seu destino. Quem é poderoso, que cobre, muito bem cobrado, seus direitos; quem não é, que sorria, entre na roda e aprenda a sambar.

Peguei-o para bode expiatório, Ziraldo? Sim, sempre tem que ter algum. E, sem ódio, espero que você não queira que eu morra por te criticar. Como faziam os racistas nos tempos em quem ainda linchavam negros. Esses abusados que não mais se calam e apelam para a lei ao serem chamados de "macaco", "carvão", "fedorento", "ladrão", "vagabundo", "coisa", "burro", e que agora querem ser tratados como gente, no concerto dos povos. Esses que, ao denunciarem e quererem se livrar do que lhes dói, tantos problemas criam aqui, nesse país do futuro. Em uma matéria do Correio Braziliense você disse que "Os americanos odeiam os negros, mas aqui nunca houve uma organização como a Ku Klux Klan. No Brasil, onde branco rico entra, preto rico também entra. Pelé nunca foi alvo de uma manifestação de ódio racial. O racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos”. Se dependesse de Monteiro Lobato, o Brasil teria tido sua Ku-Klux-Klan, Ziraldo. Leia só o que ele disse em carta ao amigo Arthur Neiva, enviada de Nova Iorque em 1928, querendo macaquear os brancos norte-americanos: "Diversos amigos me dizem: Por que não escreve suas impressões? E eu respondo: Porque é inútil e seria cair no ridículo. Escrever é aparecer no tablado de um circo muito mambembe, chamado imprensa, e exibir-se diante de uma assistência de moleques feeble-minded e despidos da menos noção de seriedade. Mulatada, em suma. País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan é país perdido para altos destinos. André Siegfred resume numa frase as duas atitudes. "Nós defendemos o front da raça branca - diz o sul - e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil". Um dia se fará justiça ao Kux-Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva." Fosse feita a vontade de Lobato, Ziraldo, talvez não tivéssemos a imprensa carioca, talvez não tivéssemos você. Mas temos, porque, como você também diz, "o racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos." Como, para acabar com a polêmica, você nos ilustra com o desenho para o bloco quemerdense. Olho para o rosto sorridente da mulata nos braços de Monteiro Lobato e quase posso ouvi-la dizer: "Só dói quando eu rio".

Com pesar, e em retribuição ao seu afeto,

Ana Maria Gonçalves
Negra, escritora, autora de Um defeito de cor.
(*) Escritora, autora de "Um defeito de cor" (Record), ganhador do prêmio Casa de las Américas, escolhido entre 212 concorrentes, em decisão unânime dos jurados.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A Volta da Inflação

extraído do Blog do Noblat, de 22/05/11

por Marcos Coimbra

Já faz algum tempo, o principal assunto discutido no país é a “volta da inflação”. Há políticos e economistas que não conseguem dar duas palavras sem a mencionar. Para a maior parte da imprensa, parece que não há nada tão importante.
É um daqueles temas em que se percebe com clareza como é difícil a “neutralidade técnica” no debate público. Pois, se são muitos os que veem razões para se preocupar com o risco de que ela volte a assustar, também são ponderáveis os motivos dos que não acreditam que estejamos vivendo ameaça maior.
Quem mais fala nela é a oposição, seja no meio político ou na mídia. Inversamente, o governo tem procurado mostrar que, embora apresente tendência de alta, o cenário “objetivo” não justifica o temor de que ela se torne incontrolável.
Sem discutir de que lado está a verdade (se é que verdade tem lado), o fato é que o assunto funciona como argumento para os que não gostam de Lula e não gostaram da vitória de Dilma. Dizer que “a inflação está de volta” é uma forma de crítica retrospectiva ao que o ex-presidente fez, especialmente no último ano. E é uma maneira de desmerecer o resultado da eleição presidencial.
A “volta da inflação”, nessa perspectiva, é o preço que o país inteiro pagaria pela ânsia continuísta dos que detinham o poder e não titubearam em colocá-lo outra vez à beira do abismo hiper-inflacionário. É, também, uma justificativa que torna menos vergonhosa a derrota que as oposições sofreram nas urnas, ao demonstrar a imoralidade do sucesso lulista. Elas teriam perdido para uma gigantesca mentira, não por seus próprios erros.
Para uma parcela nada pequena da sociedade brasileira, porém, a discussão a respeito da “volta da inflação” não faz sentido. São os que acham que ela nunca foi embora e que, se não foi, como poderia voltar?
Comparando pesquisas feitas ao longo da última década, vemos que as expectativas de que a inflação ficasse menor sempre foram pequenas, mesmo em períodos nos quais ela mostrava evidências eloquentes de queda.
Do início dos anos 2000 (passados, portanto, mais de seis anos do Plano Real e vencida a instabilidade do final dos 1990), até hoje, a proporção dos que concordavam com a frase “a inflação vai diminuir nos próximos seis meses” nunca ultrapassou 20%, em dezenas de pesquisas da Vox Populi. É verdade que ela variou para menos que 10% em alguns momentos, mas sempre teve esse teto.
Como fruto de uma longa e traumática experiência de convívio com a inflação ao longo de mais de 50 anos, a sociedade brasileira se acostumou com a sensação de que a inflação sempre aumenta, como se fosse dotada de alguma inexorabilidade. Mesmo depois de “objetivamente” controlada, ela continuou a existir no plano subjetivo: apenas uma em cada cinco pessoas (na melhor das hipóteses) apostava que ficaria menor no futuro imediato.
O que variou nas pesquisas foi a relação entre as respostas “a inflação vai ficar como está” e “vai aumentar”. Até o final do primeiro mandato de Lula, o temor de que ela avançasse superava a expectativa de que, embora não caindo, ficasse onde estava. De lá ao final de 2008, inverteram-se as proporções, com a progressiva redução das expectativas mais pessimistas.
Na crise internacional que começou então (e que está longe de terminar), houve um forte aumento do sentimento de que a inflação iria subir, em decorrência tanto de fatores objetivos, quanto subjetivos. Mas, já no final do primeiro trimestre de 2009, o medo cedeu. Novamente passou a predominar a expectativa de que a situação da inflação não se alterasse.
Agora, em pesquisa feita no mês de abril, vemos algo semelhante ao que aconteceu em 2008: crescer o temor de que a inflação aumentará, cair a sensação de que ela ficará como está. Nenhuma mudança dramática, no entanto: em dezembro, temiam que ela crescesse 33% dos entrevistados, contra 49% no mês passado. Subir 16% é subir, mas não muito.
Ninguém duvida que, se a inflação ficar muito alta, fugindo do controle do governo, sua imagem será abalada. Mas erra quem põe suas fichas na torcida de que a “volta da inflação”, nos níveis esperados, o desgaste.

 Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi