publicado no Correio do Brasil, em 3/9/2011
Por Paulo Kliass
Tá certo, eu sei que existe muita polêmica acerca das possíveis
interpretações sobre a proposição de Sérgio Buarque de Holanda quanto à
natureza cordial do jeito brasileiro de ser. Mas o fato é que há
elementos de ordem sociológica e cultural que parecem comprovar esse
nosso lado de sempre querer agradar, de ser o bonzinho. Nelson Rodrigues
falava do complexo de vira-lata e muitas vezes nos deixamos flagrar por
uma conduta que se encaixa bem nessa expressão.
Por outro lado, é amplamente conhecido o fato de que nossas elites
guardaram, desde sempre, uma postura servilista face aos interesses e as
pressões das elites dos países do chamado “centro do mundo”. E essa
forma de encarar a nossa posição nas relações internacionais continua
muito presente até os tempos recentes. Uma citação em qualquer revista
ou jornal dos Estados Unidos ou da Europa é considerada como muito mais
importante do que qualquer outro meio de comunicação daqui de dentro. E
as observações ali contidas devem ser levadas “a sério”! Muitas vezes
confunde-se o necessário ”aprender com a experiência internacional” com
simples e vulgar “copiar os caminhos e os modelos” adotados pelos países
que maior influência exercem sobre nossas classes dominantes.
E esse tipo de subserviência vale para as esferas da cultura, da
política, da sociologia e, principalmente, da economia. Nesse último
domínio, então, a coisa é terrível! E um elemento que agrava as
conseqüências é que pegamos o mau exemplo a seguir com uma defasagem
temporal – uma cópia pirata mal feita, no momento inadequado. É o velho
problema de querer ser mais realista do que o rei! E a história recente
está cheia de fatos. Os sucessivos acordos com os organismos
internacionais (Fundo Monetário Internacional – FMI e Banco
Munidial – BM) desde os anos 80, a aceitação dos modelos de ajuste
macro-eocnômico incluindo privatização e liberalização irresponsável da
nossa economia, a abertura sem controle de nosso sistema financeiro e
nossa conta de capitais aos operadores do resto do mundo, entre outros.
Do passado recente, o caso mais emblemático foi, sem dúvida alguma, a
decisão anunciada pelo governo em 2003, logo depois da posse de Lula. O
Ministro Palocci veio a público, sem que houvesse nenhuma pressão a
exigir uma medida dessa natureza, anunciar a boa vontade do Brasil em
assegurar o pagamento dos juros e serviço da dívida pública. Para tanto,
anuncia, em cerimônia de muita pompa, a elevação unilateral do
superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB. Um exemplo de bom mocismo
para o mundo das finanças! Nesse mesmo momento, por exemplo, a nossa
vizinha Argentina estava em pleno processo de renegociação de sua dívida
externa e chegou a entrar em “default” (termo do financês para o não
pagamento de um compromisso financeiro) até que os credores externos
aceitaram uma redução do valor nominal da dívida. Já os nossos
neo-convertidos à responsabilidade fiscal do Planalto Central acusavam o
falecido presidente Kirchner de demagogia e populismo. No entanto, o
futuro mostrou o acerto da via adotada por ele. O catastrofismo não
colou. Apesar da negociação dura dos “hermanos” e da perda imposta aos
credores espalhados pelo mundo, o capital internacional não deixou de se
dirigir para aquele país. Muito pelo contrário!
Pois bem, parece que as raízes da cordialidade e do servilismo são
mais profundas do que se imaginava. A tradição continua firme e forte.
Na semana passada muita gente se animou com a disposição da Presidenta Dilma em – finalmente! – receber
as centrais sindicais e as entidades do movimento pela reforma agrária.
Afinal, já havia muita reclamação de que ela estava com seus ouvidos
mais voltados para o capital (em especial, o financeiro) e pouco
sensível às demandas dos trabalhadores. Porém, parece que o otimismo
durou pouco. A grande surpresa foi a natureza do anúncio mais importante
do encontro: péssimas notícias para o País e para a maioria da
população.
Dilma anunciou em alto e bom tom, para quem quisesse ouvir: o governo
vai aumentar, ainda mais, a meta do superávit primário de 3% para 3,5%
do PIB para o ano em curso! Uma loucura! Não bastasse a previsão de
pagamento superior a R$ 200 bilhões de recursos públicos para pagamento
de juros da dívida pública, a Presidenta anuncia que vai reservar ainda
mais valores do Orçamento para essa destinação estéril do gasto público.
E ainda tem a desfaçatez de chamar isso de “responsabilidade fiscal”!
Seja por estar mal assessorada no assunto, seja por estar mesmo com
segundas intenções, o fato é que a proposta de Dilma não se sustenta nem
mesmo de acordo com os argumentos apresentados até agora. Senão,
vejamos. O governo apresentou três razões para tal decisão: i) a
necessidade de apresentar uma postura de responsabilidade no trato da
questão fiscal; ii) abrir espaço para redução da taxa de juros no
Brasil; iii) evitar que a crise nos países desenvolvidos afete ainda
mais nossa economia. Então, vamos lá, analisando um por um.
Superávit primário, recordemos, nada mais é do que um eufemismo (ou
uma enganação) do economês para dizer que todas as despesas públicas são
iguais, mas para lembrar que algumas são mais iguais do que outras. Uma
situação de equilíbrio fiscal faz referência a alguma forma de
igualdade entre o total arrecadado pelo Estado e o total de suas
despesas. Numa situação de superávit, as receitas são maiores que as
despesas e o Estado pode dispor de mais recursos para, por exemplo,
realizar investimentos não previstos. O pulo do gato veio com a criação
desse conceito de “superávit primário”. Nesse caso, todo o esforço
fiscal vai ser realizado para preservar apenas um tipo de despesa: os
gastos financeiros, com o pagamento de juros da dívida pública. Ou seja,
os demais gastos (pessoal, saúde, educação, investimentos, etc) são
contidos e apenas os gastos com juros permanecem “imexíveis”.
Ora, parece estranho aparecerem de novo com o discurso encomendado da
seriedade no trato da questão fiscal, quando o Estado esteve justamente
com uma política de redução de arrecadação, em função das isenções e
deduções concedidas às empresas e ao capital em geral ao longo dos
últimos 3 anos. Aliás, essa foi uma das medidas acertadas para evitar o
aprofundamento da crise por aqui, desde o seu recrudescimento em 2008.
Mas parece que não se consegue sair da lógica viciada dos interesses das
classes dominantes. Cortam-se as receitas por meio da isenção de
impostos devidos pelas empresas e depois repassam a conta da “necessária
responsabilidade fiscal” à maioria da sociedade por meio de cortes na
previdência social, nas áreas sociais e nos investimentos. Seriedade na
condução da contabilidade pública? Estamos todos de acordo. Porém, que
tal começarmos a reduzir despesas inúteis, como os gastos com a dívida
pública? Nesse caso, o caminho é justamente o oposto do praticado desde
há muito e anunciado agora outra vez: é necessário reduzir o superávit
primário e aumentar os gastos com investimento público!
E ainda no campo da arrecadação, a cordialidade e o servilismo
tupiniquins poderiam bem se espelhar um pouco na postura das elites de
alguns dos países tão levados em conta. O triliardário norte-americano
Warren Buffet acaba de declarar publicamente ser favorável à taxação
sobre as grandes fortunas como sendo uma forma de contribuição dos muito
ricos para a saída da crise. E o ultraconservador Presidente Sarkozy
acabou de aprovar um aumento no Imposto das Grandes Fortunas na França,
com o mesmo intento. Por mais que se possa discutir a respeito das
verdadeiras intenções por trás das iniciativas de tais personalidades do
mundo da política e das finanças, no mínimo elas poderiam servir como
argumento para implementar algo similar aqui em nossas terras. A
Constituição Federal aguarda desde 1988 pela regulamentação do artigo
153, que cria o Imposto sobre as Grandes Fortunas! Haja espírito cordial
e de subserviência!
Felizmente parece que o governo se deu conta da necessidade de que a
taxa SELIC seja reduzida. Mas causa estranheza o anúncio público que
tenta condicionar a possibilidade de baixar os juros ao aumento do
superávit primário. É só mesmo prá confundir! Ora, o governo pode
decidir baixar os juros na hora que quiser. Basta vontade política!
Porém, até agora a postura sempre tem sido de cordialidade e servilismo
com o capital financeiro. A Presidenta da República é quem nomeia os
integrantes do COPOM (diretoria do BC). Ora se a preocupação (mais do
que justificada, diga-se de passagem!) é evitar uma elevação
descontrolada do consumo e as possíveis pressões inflacionárias, o Banco
Central tem à sua disposição outros instrumentos, a exemplo da elevação
do depósito compulsório dos bancos [1] . Provoca o mesmo efeito de
reduzir a demanda e não tem o altíssimo custo do pagamento de juros. Os
únicos prejudicados serão as instituições financeiras, que reduzirão
seus ganhos fáceis e sem risco de mamar nas tetas abundantes do Tesouro
Nacional.
Ou então, os responsáveis pela economia estão envergonhados de dizer
publicamente que mudaram de idéia. E agora acham que a razão de nossa
taxa de juros ser elevada é porque nossa dívida pública é grande e que o
esforço de política econômica deve ser toda para reduzir a dívida. Essa
é outra falácia do discurso liberal, mas que saiu de moda nos últimos
anos, em razão da crise generalizada pelo mundo ter mostrado que a
realidade é bem mais complexa que seus “modelitos” possam sugerir. É
claro que a taxa de juros de um país sempre guarda alguma relação com o
risco de se emprestar para aquele Tesouro – por exemplo, comprando
títulos da sua dívida. Mas isso não tem nada a ver com o Brasil ostentar
taxas estratosféricas há décadas, mesmo depois de muita gente já ter
festejado nossa cotação como “investment grade” pelas agências de risco
internacional. Podemos baixar nossa SELIC para níveis de 6% ao ano sem
problemas – e ainda assim estaremos na lista dos “top ten” mais altos.
Reduzimos os juros e ainda ganhamos como bônus da operação a desistência
de uma boa parcela do capital especulativo que vem para cá. Com isso, a
taxa de câmbio pode ficar num nível mais realista e haverá uma queda
nas despesas financeiras do orçamento. Ou seja, basta não querer ser tão
cordial assim, bem como recuar um pouco na taxa de servilismo ao
capital financeiro internacional. Só teremos a ganhar com isso.
O terceiro argumento fala da necessidade de se evitar que a crise
internacional nos afete de forma negativa. Perfeito! Ninguém quer que
sejamos prejudicados pela recessão nos Estados Unidos e na Europa, com
suas repercussões sobre a China, Índia e demais países de peso na cena
mundial. Mas o que isso tem a ver com o aumento do superávit primário?
Nada ou muito pouco! Muito pelo contrário! A solução passa pelo reforço
do mercado interno, com a recuperação da capacidade de investimento do
Estado e pela manutenção do nível de renda por meio de programas
importantes como o salário mínimo, benefícios da previdência social,
Bolsa Família e demais projetos na área social. E como os recursos
orçamentários são finitos, a escolha deve recair sobre a redução das
despesas com juros. Além disso, por via indireta, a redução da SELIC
permite trazer a taxa de câmbio a níveis menos fantasiosos, com o fim
dessa valorização artificial atualmente em vigor. Com uma desvalorização
no real, as exportações ficam estimuladas e as importações ficam mais
responsáveis. Ou seja, aponta-se no caminho inverso da atual tendência à
desindustrialização. Essa é forma de evitar um contágio negativo da
crise externa sobre nós.
E me despeço aqui com uma frase de Paul Krugman, economista que pode
ser acusado de tudo, menos de ser esquerdista ou sonhador. Escreveu ele
recentemente: “Logicamente, os suspeitos habituais chamaram essas ideias
de irresponsáveis. Mas eles sabem o que é, de fato, irresponsável?
Sequestrar o debate sobre a crise para conseguir as mesmas coisas que
defendiam antes da crise, e deixar que a economia siga sangrando.” [2]
[1] http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4896
[2] http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18253
Paulo Kliass é Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e
doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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